André Luiz Covre
Professor da disciplina Informática e Sociedade no curso de Sistemas de Informação do Departamento de Computação (Decom) da Faculdade de Ciências Exatas (Facet) da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) no campus Diamantina. É coordenador do Pint of Science Diamantina e estuda a relação das pessoas com a internet
O temor revelado de forma didática pelo documentário O Dilema das redes era apenas uma especulação em 2014, quando ainda compreendíamos as atividades linguajeiras das pessoas na internet como uma espécie de reinvenção. Provavelmente, mesmo que as empresas da época já utilizassem as práticas hoje denunciadas, o horizonte para os seus produtos ainda era algo que podíamos chamar de utópico, e não de distópico.
Naquele momento, buscávamos entender como as pessoas estavam fazendo coisas interessantes, como narrar um julgamento do Supremo Tribunal Federal pelo Twitter, como se fosse um jogo de futebol; ou questionar de forma inovadora, também pelo Twitter, reportagens homofóbicas publicadas pela mídia tradicional; ou ainda se posicionar contra o racismo em uma publicação cotidiana no Facebook. Alguns anos depois, a realidade se provou um pouco mais confusa.
Uma forma de tentar esclarecer um pouco as coisas é utilizar o termo plataformas em vez de simplesmente redes sociais. O fato é que plataformas como essas não são redes sociais por si só, elas são “espaços utilizados para a expressão das redes sociais na internet”, dispositivos pelos quais as pessoas se conectam e interagem. Uma definição bastante simples, mas que reforça o fato de que nós podemos criar redes sociais em várias plataformas, por assim dizer, como em uma esquina ou em um bar.
Essa definição é boa porque ela coloca os pingos nos “is” e separa o joio do trigo, até porque temos criminalizado demais as pessoas e suas redes ao invés das plataformas. Quem cria redes sociais são as pessoas. E da mesma forma que um dono de um bar, ao conhecer você e seus amigos há anos, e saber do que vocês gostam, pode se utilizar do seu balcão para tentar empurrar, com um desconto e uma conversa amigável, uma cerveja de péssima qualidade, uma plataforma como o Facebook, por exemplo, faz a mesma coisa, em proporções obviamente incomensuráveis. Ou seja, esse modelo de negócios é antigo! Entretanto, você pode sair do bar imediatamente, trocar de bar, nunca mais voltar ou começar a se reunir com seus amigos em outros locais.
A pergunta aqui é: por que não inventamos logo uma nova plataforma, sabendo de todos os malefícios que esses produtos nos causam?
A provocação posta para os alunos do curso de Sistemas de Informação da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) é sempre essa: se por um lado o desenvolvimento das tecnologias ligadas à internet impacta de forma inexorável nossa vida, por outro, nossas atividades na internet também impactam o desenvolvimento dessas tecnologias.
Não é difícil enxergar isso. Qual o motivo do Facebook nos lembrar de uma foto que postamos há cinco anos? Nós, seres humanos, vivemos em grupos e gostamos de recordar dos nossos momentos. E mais, gostamos que todos que viveram esses momentos conosco participem da recordação. Esse exemplo mostra que a plataforma se modificou por causa de uma atividade humana corriqueira e fundamental, e não o contrário.
Mas, de repente, nos pegamos recompartilhando aquela mesma foto para que todos as pessoas que foram marcadas nela há cinco anos a curtam novamente e a recompartilhem. Fazemos isso para nos manter conectados no tempo, tanto naquele momento em que a foto foi tirada (passado) como naquele momento em que será curtida (futuro). Enunciar algo ao mundo é sempre esperar ser ouvido. Postar ou repostar uma foto não é diferente.
Uma ferramenta que ajuda as pessoas a se entrelaçarem no passado e no futuro é uma ferramenta que fornece tempo e informação para as empresas circularem suas propagandas ali do lado, as quais terão relação cada vez mais próximas com o conteúdo daquela foto, ou seja, terão cada vez mais chances de serem clicadas.
Até que essa mesma lógica começa a ser usada para influenciar eleições, governos, violência contra crianças, guerras, e sabe-se lá o que mais.
Por isso é necessário reafirmar: quem cria redes sociais são as pessoas. Nunca, em toda a história, o leitor do jornal, o ouvinte do rádio, o telespectador da TV, e mais recentemente, o internauta, se propuseram a ser meramente receptores da informação ao usar qualquer uma dessas plataformas. A sociedade avançou tanto nessa luta por autonomia, que fomos parar no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, as quais, hoje, tentam novamente nos manter dentro das bolhas.
Podemos criar algo partindo do zero. Algo que nos permita as mesmas formas de conexão e interação, as mesmas formas de compartilhar, curtir, xingar, brigar etc. Mas que faça isso de acordo com princípios simples de autocontrole, tanto da audiência quanto das próprias informações. Ou seja, o usuário de uma plataforma justa precisa saber como controlar de forma fácil e intuitiva a coleta e a utilização das informações relacionadas a ele. O usuário também precisa poder definir de forma fácil e intuitiva como as informações das pessoas que estão na sua rede aparecem para ele, além de poder controlar a veiculação de propagandas em seu perfil.
A pergunta aqui é: por que não inventamos logo uma nova plataforma, sabendo de todos os malefícios que esses produtos nos causam?Por que, já que existem (ou podem ser inventados) vários modelos de negócios rentáveis e mutuamente compensatórios para uma plataforma como essa? Modelos que poderiam, inclusive, inaugurar um novo segmento ao funcionar com algoritmos que privilegiem as pessoas que criam as suas redes, suas escolhas, suas bolhas e, sobretudo, suas estratégias para sair das próprias bolhas.