Até o dia 2 de fevereiro de 2020, visitantes do Memorial Minas Gerais Vale, em Belo Horizonte (MG), podem visitar uma obra que é fruto de pesquisa brasileira sobre escravizados perseguidos pela Inquisição.
A exposição “Vozes Atlânticas“, composta por fotos, vídeos e objetos, conta a história de dois africanos que foram escravizados, trazidos para o Brasil e posteriormente perseguidos pela Inquisição, acusados de práticas heréticas e feitiçaria.
Em meados do século XVIII, Luzia Pinta e José Francisco foram levados ao tribunal, em Lisboa, e degredados para outra região distante. A exposição segue seus passos em Angola, Uidá, Rio de Janeiro, Sabará, Lisboa, Castro Marim e galés.
A exposição é um desdobramento da dissertação de Thaís Tanure, que já foi tema de reportagem da revista Minas Faz Ciência, e integra o projeto Novos Pesquisadores, do Educativo do Memorial Minas Gerais Vale.
Para a pesquisa, Thaís inventariou 59 processos, localizados em arquivos portugueses como o Nacional da Torre do Tombo, o Histórico Ultramarino, o Central da Marinha de Lisboa e a Biblioteca Nacional.
Da Universidade para o Museu
Graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Thaís dedicou toda sua trajetória acadêmica a estudos sobre as culturas indígenas e afro-brasileiras, buscando novas formas de abordagem da cultura colonial.
“No mestrado, comecei a me interessar pelo degredo: a ideia de afastar a pessoa condenada do seu lugar de domicílio“, conta. Sua pesquisa trata da relação com as fronteiras, com as formas como a sociedade, historicamente, se livra daqueles que não assimila.
Comecei a estudar as bruxas acusadas pela Inquisição portuguesa que vieram para o Brasil. Mas identifiquei que havia também escravizadas e escravizados degredados pela Inquisição. Naquele contexto, os escravizados eram entendidos como um bem, uma propriedade, mas, ao mesmo tempo, eram deslocados de lá pra cá, depois de serem trazidos da África, eram condenados e levados para Portugal.
Nesse processo, a pesquisadora preocupou-se em desenvolver novos olhares para a pesquisa mas, também, abordagens diferenciadas para o ensino de história.
Escravizados perseguidos: qual o lugar da pesquisa e do ensino?
Thaís aponta que, na formação para o ensino básico de História, há vários elementos defasados entre ensino e pesquisa: “Livros didáticos não trazem informações sobre a atuação da Inquisição no Brasil, embora haja uma historiografia bem consolidada sobre o tema”.
Segundo ela, tanto a questão dos primeiros povoadores, quanto a vida dos degredados, é pouco visível.
“A associação entre a povoação e os degredados é apagada no ensino básico. Para mudar esse cenário, o mais importante seria pensar a valorização das culturas afro-brasileiras, que geravam perseguição, e ainda sofrem perseguição até hoje”.
A pesquisadora acredita que essa relação é pacificada até os dias atuais porque não há nos currículos um tópico sobre “tráfico de escravizados”, por exemplo. “É importante entender o que foi esse fenômeno da época moderna e saber que foram os portugueses que começaram com essas práticas. Há um relativismo em relação à escravização que precisa ser combatido“.
Ela explica que os modelos de escravidão que já existiam na África eram muito distintos da escravidão Atlântica, que transformava homens e mulheres em mercadoria.
Nesse cenário, o movimento de transformar sua dissertação em uma exposição aberta ao público é um importante passo na democratização dos conhecimentos desenvolvidos na Universidade.
“Já estamos caminhando, mas há muito o que avançar. Essa história precisa ser contada nos livros didáticos e valorizada com espaço mais significativo nos currículos. A história da África não pode continuar vindo como um apêndice no ensino”, pontua.
Passado, presente, futuro
Em entrevista ao Minas Faz Ciência, Thaís Tanure falou sobre como a cultura brasileira é uma cultura autoritária. Segundo ela, é possível associar o degredo com a perseguição que até hoje ocorre às religiões de matriz africana.
“A gente não conseguiu lidar com o trauma da escravidão, não conseguimos elaborar uma justiça social real. Relegamos esses traumas ao esquecimento e à teoria da democracia racial. Não nos manifestamos contrariamente e politicamente ao modo como essas coisas foram encaminhadas e silenciadas”.
Segundo ela, as iniciativas realizadas nas últimas décadas ainda são insuficientes para gerar transformações na sociedade, o que indica a necessidade de mais pesquisas e abordagens sobre o tema, da pesquisa ao ensino, e também em atividades culturais, como exposições em museus.