Por Ana Carolina de Souza Pereira, Fernanda Freitas, Gabriel Rezende, Gustavo Brasileiro, Nathália Silva e Paola Siman*
O novo coronavírus (SARS-COV2) trouxe várias preocupações sobre a forma de monitorar o avanço da doença nos territórios. Nesse contexto, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) têm o papel fundamental de identificar os doentes, estabelecer contato e detectar as necessidades dessa população. Mas o trabalho desses profissionais vai muito além da atuação em momento de pandemia.
Servindo como porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), os ACS fazem parte da equipe de Atenção Básica e de Saúde da Família, composta no mínimo por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agente. Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), uma equipe pode atender em seu território de 2.000 a 3.500 pessoas, sem ferir os princípios e diretrizes da Atenção Básica. Um único Agente de Saúde pode ser responsável por até 750 pessoas, dependendo do grau de vulnerabilidade do território em que ele atua.
De acordo com o Sistema de Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde, existem, 288.425 ACS executando atividades com recursos repassados pelo Ministério da Saúde. Desse total, 52.930 atuam no estado de Minas Gerais, sendo 2.670 deles em Belo Horizonte.
Importância histórica
Os agentes comunitários no Brasil passaram a fazer parte do SUS a partir de uma iniciativa do governo do Ceará, no final da década de 80, em que foi feita a contratação dos ACS. A partir dessa época, os índices de mortalidade infantil, no Ceará, que eram muito significativos, tiveram uma redução muito importante.
Foi dentro desse contexto, que a discussão sobre a importância da Atenção Primária em Saúde começou a aparecer no âmbito do processo de estruturação do SUS. Em 1994, foi implementado, nacionalmente, o Programa Saúde da Família (PSF), com a presença dos agentes comunitários nas equipes.
Antonio Thomaz Machado, pesquisador e professor do Departamento de Medicina Preventiva Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fez parte da reforma sanitária que aconteceu no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980 e que desenhou a legislação do SUS. Ele ressalta a relevância cada vez maior da atuação dos ACS na sociedade.
“O ACS tem um papel importante no apoio às condições crônicas, como hipertensão e diabetes. Existe um conjunto de ações ligadas, de atenção primária, que ele faz no território”, explica Thomaz.
O professor cita, por exemplo, a importância do profissional na conscientização sobre a vacinação e no acompanhamento a consulta e exames.
Alaneir de Fátima do Santos, também professora do Departamento de Medicina Preventiva da UFMG, participa da linha de pesquisa sobre a atenção primária e destaca que os agentes comunitários “são responsáveis por fazer visitas, casa a casa, pelo menos mensalmente, para saber como está a situação de saúde daquelas famílias”.
Segundo Santos,
“ele percorre as ruas, e se responsabiliza pelo acompanhamento das condições de saúde daquela população. Ele desenvolve esse conjunto de ações com objetivo de propiciar uma educação à saúde para a população de forma que ela consiga ter um acompanhamento adequado, fazendo com que as pessoas não abandonem os tratamentos”.
Alaneir de Fátima Santos, Departamento de Medicina Preventiva da UFMG
Atenção primária
O Ministério da Saúde descreve Atenção Básica, ou primária, como o “conjunto de iniciativas para cuidar da população no ambiente em que vive”. Conforme a pasta, trata-se do “primeiro nível de atenção em saúde e se caracteriza por um conjunto de ações no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde das coletividades“.
O professor Thomaz ressalta que é importante “fazer uma atenção primária de saúde que não seja só consulta, mas que seja prevenção, promoção, apoio à equipe de saúde da Família”.
Alaneir, que participou da implantação do Programa Saúde da Família como médica, em Belo Horizonte, cita o papel do ACS no desenvolvimento das ações de atenção primária, responsável, de acordo com ela, por resolver cerca de 80% dos problemas da população.
“Essa presença dos agentes comunitários, no território, dentro dos domicílios, desvenda essas situações. Nos possibilita, a partir da casa das pessoas, termos conhecimento do que acontece ali. Isso é uma informação muito importante, porque, às vezes, você sabe dizer que uma família é desestruturada, que a gente precisa mobilizar outros recursos para o atendimento”, diz.
Para a prática das funções, é imprescindível ao agente comunitário possuir vínculo com a comunidade na qual ele trabalha, conforme Alaneir. Entre os critérios de seleção para a escolha de profissionais, segundo a professora, está a residência do profissional na área de atuação.
“A ideia, fundamentalmente, é que ele resida naquele lugar, então ele conhece as características do lugar e fala a linguagem da população. Na questão da promoção à saúde, é uma questão muito relevante. Às vezes, em uma consulta médica, os pacientes não se abrem tanto em relação aos problemas, e com o ACS, alguém da comunidade, eles conseguem fazer essa relação. Por isso, é importante residir no território”, analisa.
De acordo com Alaneir, o fato de o agente comunitário pertencer à comunidade facilita a identificação de famílias em situação de precariedade e vulnerabilidade econômica, que demandam amparos financeiros concedidos pelo poder público, por meio da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS). “Os ACS fazem isso de uma forma bem ativa. Essa interação deles com a questão de identificar famílias profundamente carentes e que precisam de auxílio de alguma forma”, ressalta.
Atuação na pandemia
A pandemia de COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, alterou a rotina dos agentes comunitários. Eles tiveram que evitar, momentaneamente, devido ao distanciamento social, as visitas domiciliares presenciais e adotaram outras formas de realizar o acompanhamento dos pacientes. A principal delas é o uso de ligações telefônicas e contatos por meio do aplicativo de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.
Neste momento, a atuação dos profissionais é classificada como “muito relevante” por Alaneir. Ela destaca dois aspectos: primeiro, o telemonitoramento dos pacientes que tiveram suspeitas ou ficaram doentes pela COVID-19.
“Eles usam o telefone e ligam para a família, ou de 24h em 24 horas, ou de 48h em 48h, dependendo se o paciente é idoso e tem comorbidade, para saber como aquela família está se relacionando com a COVID-19. Pergunta sobre os sintomas, se teve piora do quadro, orienta a ir à unidade básica ou ao centro de atendimento à COVID-19. Um dos papéis relevantes é o processo de monitoramento de pacientes com a doença estabelecida e dos seus contatos. Principalmente, frisando a questão de manter o isolamento social”, relata a pesquisadora.
O segundo aspecto é monitoramento de pacientes que demandam acompanhamento constante, como hipertensos e diabéticos graves.
“As pessoas morrem por COVID-19, mas também morrem porque deixam de buscar assistência à saúde, por medo do coronavírus. Quando avaliamos a taxa de mortalidade, há aumento no Brasil. Uma parte é devida à COVID-19, mas uma parte é explicada por as pessoas não procurarem precocemente os serviços de saúde”, alerta
No dia a dia do ACS
Na avaliação da agente comunitária de Brumadinho, Maria Lúcia, 53 anos e que há 12 atua na profissão, “lidar com o lado humano das pessoas” é um dos principais fundamentos do trabalho do agente comunitário.
“É muito gratificante, porque você aprende a cada dia, ensina um pouco da sua essência. Dentro da atenção primária, nossa função é muito importante quando se encara que a gente não tem que esperar a pessoa adoecer para trabalhar esse cuidado. Temos que ter um olhar muito antes disso acontecer. É como uma formiga com as antenas ligadas o tempo todo, captando o que cada pessoa precisa”, avalia.
Com a bagagem adquirida ao longo de mais de década de profissão, ao ser questionada sobre feitos que marcaram sua carreira, a agente comunitária diz que poderia “contar casos o dia todo”, mas cita dois que envolvem pacientes idosas. Em ambos, Maria Lúcia diz ter sido ameaçada de morte.
O primeiro é de uma idosa que ela conheceu há 11 anos, no início da trajetória profissional como ACS. A senhora era hipertensa, diabética e cega de um dos olhos. “Ela era muito arredia, tinha muita vergonha. Tinha quatro filhos homens e uma mulher, que morava em outra cidade”, conta Lúcia.
“Aos poucos, me aproximei, me tornei a amiga, e descobri que o filho abusava sexualmente dela”, relata Lúcia. “Demorou muito tempo para que ela confiasse em mim, mas quando isso aconteceu ela se abriu.”
“Eu até comprei um problema para mim, porque eu corri risco de vida. O filho dela falou que ia me matar. Não me intimidou, porque quando eu me proponho a fazer alguma coisa dou minha vida por aquilo, não importa como seja. Eu falei para ela que ela devia procurar o Fórum, o promotor, e ela fez isso. Ele foi expulso de casa”, conta.
“A vida dela melhorou, ela ficou mais tranquila. Assim que começou melhorar, ela faleceu. Eu penso nisso e tenho coração em paz, porque sei que ela ainda conseguiu provar um pouco desse alívio para a alma”, alega.
O segundo caso envolve desassistência. Lúcia conta que a idosa, de 90 anos, tinha nove filhos, mas morava sozinha e comia até comida azeda. “Ela era hipertensa e não tomava os medicamentos direito. Não tinha um telefone para se comunicar caso passasse mal à noite.”
“Aquilo mexeu muito comigo. Eu comecei a assistir ela de uma forma diferente. Eu falei: ‘Vou encarar essa mulher como se fosse alguém da minha família. Eu preciso ajudar essa mulher. Então eu comecei a relatar para os meus superiores do posto de saúde os problemas que essa mulher vinha enfrentando”, conta.
Maria Lúcia tentou contato com os filhos, mas diz que não adiantou. Decidiu, então, procurar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), programa que acompanha pessoas vulneráveis. “Eles entraram com advogado, chamaram a família no Fórum. Foi estipulado como seriam os cuidados, e os filhos foram obrigados a cuidar da senhora”, conta orgulhosa.
Depois, vieram ameaças de uma das filhas da idosa. “Inclusive, uma neta dela trabalha na área da saúde e virou minha inimiga. Ela chegou a ir no meu posto de saúde para questionar minha chefe se eu era paga para questionar o que os pacientes comiam, se eles dormiam sozinhos ou não, que achava um absurdo”, diz.
“O que mais me marcou nesse caso é que ela durou muito tempo e, um dia, eu passando na porta da casa dela, ela me chamou e disse: ‘Lúcia, eu queria te agradecer, tudo o que você fez por mim, porque minha vida mudou’”, completa.
ACS como objeto de pesquisa
Otávio de Souza Fraga, especialista em Atenção Básica em Saúde da Família, pela UFMG, se propôs a analisar o profissional como elo entre comunidades e os programas de saúde da família do governo, a partir das produções cientificas sobre agente comunitário de saúde com ênfase em trabalhos que abordassem as dimensões relacionadas à atribuição de ampliar o vinculo da equipe com a comunidade, no período de 2005 até 2010.
Segundo ele, os agentes são peças fundamentais para a reorganização da atenção básica, pois eles atuam em diversos contextos promovendo a saúde e minimizando agravos, porém, a pesquisa identificou algumas dificuldades para atuação destes trabalhadores da atenção básica.
Entre as dificuldades, estão:
- Necessidade de número maior de visitas, dificultadas devido ao acúmulo de funções administrativas por parte dos agentes;
- Precarização de vínculos e aligeiramento de sua formação;
- A forma como o trabalho está organizado, com a moradia na comunidade assistida, pode ser uma fonte de sofrimento psíquico para esse trabalhador;
- As precárias condições sociais de alguns atendidos dificultam a atuação dos agentes.
Saiba mais
Pesquisas desenvolvidas por especialistas formados no Curso de Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família (UFMG)
- Projeto de Capacitação das agentes comunitárias de saúde da UBS Várzea do município de Lagoa Santa (2014)
- Educação continuada em saúde para agentes comunitários de saúde (2014)
- Plano de ação para capacitação de agentes comunitários de saúde em Mariana (2014)
- Fatores facilitadores e dificultadores na formação de agentes comunitários de saúde em alimentação nutrição (2014)
Assista também
[Vídeo] Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas
Considerando as especificidades locais da Amazônia Legal e Pantanal Matogrossense, o Ministério da Saúde oferece aos municípios que optam pelo arranjo organizacional das Equipes de Saúde da Família Ribeirinhas (ESFR) apoio financeiro para que estas desempenhem a maior parte de suas funções em UBS construídas/localizadas nas comunidades pertencentes à região e cujo acesso se dá por rio.
*Estudantes de jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte, orientados pela jornalista da MFC Lorena Tárcia