Desde o início da implementação de medidas de isolamento social no país, estabelecimentos comerciais e consumidores tiveram que se adaptar à nova rotina. Para bares e restaurantes, o investimento no serviço de delivery foi a forma encontrada para sobreviver à pandemia. Já os consumidores enxergaram nos aplicativos de entrega a solução para o abastecimento sem sair de casa.
No meio dessa dinâmica estão os entregadores. O aumento do desemprego nos últimos anos, a instabilidade financeira potencializada durante a pandemia e o crescimento dos serviços de delivery fizeram com que os aplicativos de entrega registrassem um aumento no número de entregadores cadastrados.
Desde o início do isolamento social, em meados de Março, a Rappi chegou a registrar pico de 300% de crescimento no número de pedidos de cadastros de entregadores no app.
Este contexto suscita questões relevantes a respeito dos direitos trabalhistas dos entregadores. Por isso, a Minas Faz Ciência conversou com o professor Admardo Gomes Júnior, do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA) do CEFET-MG.
Muitos têm a ideia de que trabalhar nesse tipo de serviço é ter liberdade e autonomia. Existe todo um discurso de “ser o seu próprio chefe” quando falamos de entregadores e motoristas de aplicativos. De onde vem essa ideia?
Entregadores e motoristas de aplicativos fazem parte do que hoje conhecemos como “Gig Economy”, que podemos traduzir como “Economia Compartilhada” ou “Economia de trabalhadores autônomos pontuais”. Entretanto, não se trata de uma nova modalidade de trabalho. O que pode ser considerado novo são as formas avançadas da chamada era digital, com a utilização de ferramentas como Big-Data e Geoprocessamento, no uso de aplicativos na intermediação da prestação de serviços. Em paralelo, estamos assistindo a uma mudança na concepção e no valor do trabalho. Quase ninguém quer ser empregado e sim um empreendedor. Trata-se no fundo de uma disputa ideológica que permite, ou não, que o individuo se reconheça como um trabalhador.
Esse tipo de trabalho apareceu como uma “solução” para o problema do desemprego no país, e uma saída para alguns trabalhadores durante a pandemia. Mas até que ponto é de fato uma solução? Até que ponto isso é benéfico?
Se podemos pensar este tipo de trabalho como uma solução, como psicólogo diria: trata-se de uma solução de compromisso. Isso é, uma forma de dar lugar a algo sem se haver conscientemente com sua origem. Visto por outro ângulo, são prestações de serviços essenciais ao funcionamento do capitalismo atual. Pensem comigo, o que seria do pouco que sobrou da economia em tempos de confinamento se não fossem os entregadores? Eles são essenciais hoje em dia. Mas apenas enquanto estiverem produtivos. Se eles adoecem, se são contaminados pelo Coronavírus, ou se sofrem algum acidente de trabalho, eles passam a ser invisíveis como eram antes de encontrar esta forma de sobrevivência. Penso que a reflexão necessária é que precisamos de relações de trabalho que sustentem o equilíbrio entre os valores do mercado e os valores do bem comum.
Quem se beneficia com o crescimento desses serviços?
O discurso hegemônico é que todos se beneficiam. Mas quem de fato mais ganha são as empresas que desenvolvem e gerenciam os aplicativos. As plataformas digitais são os mais exitosos meios de nossa época para a extração de mais-valia. No estágio atual do capitalismo a exigência de rentabilidade e produtividade se sustenta no consumo universal. Há nesse discurso um apelo que é democrático: os objetos de consumo são para todos. Objetos cada vez mais perecíveis, descartáveis, construídos para serem obsoletos e readquiridos no mercado.
O que as empresas/aplicativos precisam ter em mente para que as relações trabalhistas sejam benéficas tanto para eles quanto para os entregadores? É possível que isso aconteça?
Os interesses e valores das pessoas que compõem uma empresa são diferentes e, por vezes, antagônicos. Todas estas pessoas que compõem as empresas em sociedades mercantis de direito trabalham sob a tensão de pelo menos dois polos de valores: os valores do mercado e os valores do bem comum. Cada um desses polos tende a agregar valor para si.
Assim, não vejo por que as empresas de aplicativo, por exemplo, se responsabilizariam pelos entregadores se não há os dispositivos normativos que as obriguem a isso. São empresas capitalistas, orientadas para o lucro, que encontram um Estado que legitima sua forma de uso da força de trabalho. Assim como no período da escravidão ter um escravo era validado pelo Estado. Hoje, nessas “formas modernas da escravidão”, muito mais eficazes, a mão de obra se oferece livremente sob a rubrica de trabalhador autônomo.
Qual é o papel dos consumidores diante desse problema?
É uma boa questão! Neste momento, usar um serviço mediado por uma empresa de aplicativo pode ajudar a levar comida para a família do entregador. Mas certamente o expõe a um risco de contaminação que a empresa não se responsabilizará. Como consumidores somos parte integrante do funcionamento da maquinaria capitalista, assim como propagadores do discurso que sustenta e legitima tudo isso.
Cobrar das empresas o respeito às leis trabalhista e não comprar de quem viola a lei deve ser um princípio ético de todos nós. Mas não é suficiente, posto que as empresas que intermediam serviços pelos aplicativos funcionam dentro da lei. E nem sempre estamos dispostos a mudar nosso comportamento como consumidor porque isso pode nos custar mais caro e podemos até mesmo nem dispor dos recursos para tal. Veja que ao final voltamos à questão dos valores e a tensão entre o mercado e o bem comum.
Precisamos pensar formas de defender os valores do bem comum. Penso que isso se faz reconhecendo e dando visibilidade à todas as nossas ações do cotidiano como efetivas ações políticas. Essa pandemia, que estamos atravessando, a todo momento nos coloca diante desse desafio, pensar em cada tempo e lugar um singular equilíbrio entre os valores do mercado e os valores do bem comum. Isso é uma ação política.