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Igreja de Nossa Senhora da Abadia, em Romaria (MG). Foto: Arquivos da pesquisadora

“Meus primeiros passos são ansiosos. Tenho medo, medo do novo, do não conhecido, medo da vitória e também do fracasso. Meus sentimentos são confusos e esperançosos. Coloco-me na estrada para tentar empreender as sensações da caminhada. Tento fazer um exercício de alteridade, mesmo tendo a consciência de sua subjetividade” (trecho da tese “A peregrinação ao sagrado: os caminhos que levam à Romaria/MG)

Quando os caminhos da ciência cruzam os caminhos da fé, o resultado é um trabalho de pesquisa voltado para a dimensão humana. A professora da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (Eseba/UFU), Luana Moreira Marques, percorreu os passos científicos mais engajados que se pode descrever. Na tese de doutorado, investigou jornadas, espaços e cotidianos de peregrinos que seguem rumo à Romaria, município do Triângulo Mineiro.

Cidade de Romaria, no Triângulo Mineiro. Foto: Arquivos da pesquisadora

A cidade, que tem menos de 4 mil habitantes, é considerada território sagrado, em que na primeira quinzena de agosto, é realizada a festa em homenagem a Nossa Senhora da Abadia. A tradição completou 148 anos e a devoção pela santa leva cerca de 300 mil fieis à localidade, conforme estimativas da Polícia Militar. A presença de tantos romeiros modifica as práticas e as paisagens, sobretudo nos períodos de peregrinação e da festa, que é reconhecida como patrimônio imaterial de Minas Gerais.

A pesquisadora, nascida e criada em Uberlândia, conta que na infância participava da festa e acompanhava toda a mobilização da família pela peregrinação. Dessa vivência surgiram algumas perguntas que desde aquele tempo trazia consigo e agora foram propulsoras da pesquisa: “Por que tenho que ir a Romaria para ser devota de Nossa Senhora da Abadia, sendo que há uma igreja com o nome da mesma santa aqui em Uberlândia?” e “Por que a cidade é um lugar sagrado, se Nossa Senhora não esteve lá?”.

A partir daí, a pesquisadora iniciou a estrada da tese, que ela mesma define como “um caminho igual ao do peregrino, que eu fiz para ouvir, contar e viver historias”.

Na pesquisa, Luana Moreira definiu que um lugar se torna sagrado por três fatores: 1) ser local de alguma hierofania (aparição de santo, alguma graça especial ou milagre extraordinário); 2) ser espaço de um marco histórico, como no caso do Monte das Oliveiras em que Jesus esteve presente; 3) ser resultado de arranjos sociais, econômicos, culturais, históricos que transformam aquele espaço em sagrado. “A cidade de Romaria se encaixa neste terceiro movimento. É fruto de uma construção social”, explica a pesquisadora.

Você pode baixar a tese completa

Em busca da história

Apesar de não ser uma tese da área de Historia, o trajeto de investigação começou com a busca por documentações e livros que contassem a história de Romaria. De acordo com a professora, pouco material específico foi encontrado, por isso ela foi estudar a tradição cultural de devoção a Nossa Senhora da Abadia, fora do Brasil.

Igreja de Nossa Senhora da Abadia em Amares – Portugal. Foto: Arquivos da pesquisadora

Durante uma temporada de doutorado sanduíche na Europa, Luana Moreira visitou Portugal em busca de registros para sua pesquisa. Em Amares, distrito de Braga, norte do país, esteve no lugar onde os católicos acreditam que houve aparição da santa. “A imagem foi escondida dos mouros para não quebrar. Era comum que invasores destruíssem símbolos sagrados. Por isso, a imagem foi guardada embaixo de uma pedra”, conta. Segundo a pesquisa, a santa foi achada no ano de 1.107 por pessoas viram uma luz surgindo do local.

No ponto do encontro, construiu-se o primeiro santuário Mariano de Portugal, local hoje pouco visitado por turistas. Luana Moreira conseguiu livros e documentos que relataram a vinda de parte da população do Norte de Portugal para o interior do Brasil. “Trouxeram a devoção pela Nossa Senhora da Abadia e parte dessas pessoas veio para a região onde hoje é o Triângulo Mineiro”, explica.

Esses devotos portugueses começaram a fazer uma festa em homenagem à santa em Muquém, interior de Goiás, mas logo o “centro” da fé se transferiu para Minas Gerais.  Os fieis conseguiram autorização do bispo da época para voltar a Portugal e buscar uma imagem de Nossa Senhora da Abadia. Ela foi levada para Romaria, onde foi construída uma capelinha pare recebê-la. A pequena ermida deu lugar a uma igreja modesta, depois a uma grande paróquia que se destaca na paisagem da cidade atualmente. A tradição começou a atrair peregrinos de todos os lugares do Brasil.

Passos da fé

[quote]‘Em algumas centenas de metros alcançamos a rodovia. Por todos os lados vejo pessoas refletidas pelos faróis dos carros. São dezenas de peregrinos que caminham para o mesmo destino. Jovens, adultos, senhores, homens mulheres. A romaria não parece, a priori, fazer distinção de gênero ou idade. (trecho da tese “A peregrinação ao sagrado: os caminhos que levam à Romaria/MG)“[/quote]Na festa em agosto, chegam pessoas de Goiás, São Paulo, Brasília, Mato Grosso, outras cidades de Minas e, principalmente, dos municípios do entorno de Uberlândia. Tem gente que faz o caminho a pé, de trator, cavalo, ônibus ou bicicleta. Alguns vão de carro de boi, como é o caso de muitos moradores de Monte Carmelo que passam até três dias viajando.

Há romeiros que criam o boi durante um ano exclusivamente para montar o carro e comparecer à festa de Nossa Senhora da Abadia. “É a dimensão do possível. As pessoas vão da forma que podem ir. Se não conseguem ir de carro de boi, se dispõem a ajudar romeiros no caminho porque aquilo significa fazer algo pela santa”.

Luana Moreira seguiu os passos dos peregrinos e foi para estrada tentar completar o caminho até Romaria. Ela se lembrou de quando criança fazia o trajeto em traseiras de caminhão, junto com toda família. Segundo a pesquisadora,

Carros de boi no caminho. Foto: Arquivos da pesquisadora

desta vez, “faltou fé” para completar todo o trajeto, mas o trecho que conseguiu fazer foi suficiente para coletar histórias, por meio de entrevistas, e ver de perto a obstinação dos fiéis.

Cidade transformada

Um dos principais aspectos relatados na tese de Luana Moreira é a transformação que a festa de agosto provoca na cidade de Romaria. O município é essencialmente rural, pois tem Produto Interno Bruto (PIB) de aproximadamente R$ 210.808,00, sendo que 78,11% vêm da agropecuária, 13,46% dos serviços e 8,43% da indústria. O cenário econômico muda quando chegam os peregrinos.

“Os moradores fazem arranjos na cidade para receber as pessoas. Usam a festa como forma de renda, por isso uma vez por ano conseguem um excedente em dinheiro que usam para reformar a casa, viajar, formar os filhos, trocar de eletrodomésticos ou de carro”, explica a professora.

As casas de Romaria têm cômodos aos fundos, que no interior de Minas são conhecidos como “meia-água”. Muitas famílias se mudam para esses cômodos durante a homenagem a Nossa Senhora da Abadia para alugar a casa onde vivem. Chegam a cobrar, por 10 dias de festa, o valor que seria proporcional a seis meses regulares de aluguel. Daí, os peregrinos se ajustam, pois casas pequenas chegam a abrigar até 20 pessoas.

Feira em Romaria no dia da festa. Foto: Arquivos da pesquisadora

“Tempo-espaço festivo”

Outro aspecto muito observado pela pesquisadora são as mudanças no decorrer do tempo. “É impressionante o quanto as pessoas conseguem se adaptar. Parece que a festa acompanha as mudanças do tempo. Um entrevistado me disse que, antigamente, via a festa começar e terminar, se referindo a todo processo de montagem e desmontagem. Hoje, a festa é instantânea. Ele disse que acorda e não tem mais nada no dia seguinte às celebrações”, conta Luana Moreira.

[quote align=’right’]“Demoro vários dias para me restabelecer. Meses depois ainda carrego comigo as cicatrizes das bolhas. Um rápido olhar sobre meus pés também revela as unhas perdidas e seus hematomas. Mas o maior impacto foi marcado na minha alma. O caminho me transformou, assim como transforma todos os peregrinos, independentemente de suas motivações. (trecho da tese “A peregrinação ao sagrado: os caminhos que levam à Romaria/MG)[/quote]O que não muda, segundo a pesquisadora, é o significado que a festa tem para as pessoas. “Consegui entender que elas vão para estrada, encontram a santa em Romaria e chegam de lá renovadas. Saem da igreja dizendo que voltarão no ano que vem”.

PERGUNTAS PARA A PESQUISADORA

MFC: Por que escolheu este tema para a tese?

Luana Moreira: Não sou católica, minha família é. Eu sempre gostei do tema cultura e manifestações populares. Sou formada em Turismo e a Geografia entrou como segunda opção. Acabou se tornando a primeira (junto com a gastronomia). Minha família inteira é devota de Nossa Senhora da Abadia. Lembro de minha avó e avô falando de ir até lá pagar promessa. Meus pais iam para Romaria de fusquinha, dando ajuda para quem estava na estrada e eu ia

Luana Moreira durante a caminhada para Romaria em 2016. Foto: Arquivos da pesquisadora

junto. Não entendia porque as pessoas faziam aquilo já que em Uberlândia tem uma igreja da mesma santa. Quando fui para o doutorado queria trabalhar com algo que estava no meu coração e mexesse comigo. Foi uma forma de prestar homenagem à minha família e dar continuidade ao mestrado em que pesquisei festas religiosas.

MFC: Em que medida um estudo como este é importante para a ciência e produção de conhecimento?

Luana Moreira: A tese mostra que é possível um trabalho científico enxergar o lado humano. É possível ter o outro como sujeito e um olhar subjetivo para captar nuances. Eu sei que isso não é muito valorizado no meio acadêmico, mas meu trabalho valoriza o humano. A gente quer uma ciência estéril e metódica. Não que isso não seja importante, mas a gente perde a dimensão do humano. É importante como as práticas religiosas mudam o contexto das cidades, é importante fazer uma leitura poética disso. A tese conta a história do outro e no final eu fiz parte dela. A cada momento que eu tomava o tempo de alguém para entrevistas, eu estava mudando a vida daquela pessoa. Quando a gente se distancia para contar uma história, a metodologia tira a dimensão do humano. As pesquisas precisam começar pensar em olhar o outro.

Luana Cruz

Mãe de gêmeos, doutoranda e mestre em Estudos de Linguagens pelo Cefet-MG. Jornalista graduada pela PUC Minas. É professora em cursos de graduação e pós-graduação.

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