A história de Leona, professora transexual da rede pública de ensino de Congonhas (MG), é tema da dissertação de Rubens Gonzaga Modesto, mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

Em “Sobre Coragem e Resistência: Contando a história de Leona, professora e mulher trans”, Rubens analisa o ingresso e permanência da professora na docência, relatando situações de preconceito, aceitação e resistência.

No período em que trabalhou na cidade de Congonhas, o mestrando tomou conhecimento sobre uma professora transexual aprovada em concurso público para trabalhar na educação infantil. Leona era a única professora trans do município o que gerou vários comentários sobre sua identidade de gênero.

 “Essa rede de comentários pode indicar muitos elementos que se referem ao significado de uma trans ocupar uma função que desfruta de certo reconhecimento social”, avalia Rubens.

Antes mesmo de entrar em contato com seu objeto de pesquisa, Rubens notou evidências de “tramas  heteronormativas que envolvem ou regulam a educação”.

“Pode-se considerar que não é apenas a ausência de um saber sobre as transexualidades que emerge, mas a força de um saber regulado pelas heteronormas que distribuem e classificam os corpos na sociedade”, observa Rubens.

A dissertação analisa relatos de Leona sobre situaçõe de preconceito, discriminação e vigilância, além das estratégias utilizadas para manter seu trabalho e vê-lo valorizado.

Em 2015, Leona ganhou o prêmio de professor destaque,  na cidade de Congonhas. Com o reconhecimento de seus alunos e professores, nutriu em si a confiança e a resistência.

“Quando a gente tá mais bem resolvida, a gente se posiciona melhor, e foi isso que eu aprendi com o tempo; a me posicionar melhor também e ter os argumentos e saber me defender”, declarou.

MFC: Qual a sua pergunta de pesquisa e como se deu a trajetória até este projeto?

RGM: A pergunta da pesquisa foi “Como se deu a inserção de uma transexual como professora do Ensino Básico da Secretaria de Educação da Cidade de Congonhas/MG e quais são suas experiências e vivências, num ambiente supostamente marcado por transfobia?”.

A ideia do projeto surgiu quando assistia uma entrevista da professora Luma Nogueira, primeira professora travesti com doutorado a lecionar em uma universidade. Ao assistir a reportagem, ocorreu-me que, em Congonhas, cidade onde resido, também havia uma professora trans e seria interessante contar sua história.

MFC: Qual foi o seu percurso metodológico?

RGM: Trata-se-se de uma pesquisa qualitativa, ancorada na metodologia da pesquisa etnográfica e da entrevista narrativa, uma vez entendo que esse recurso seja o mais adequado para a compreensão de problemas e questões relacionados à transexualidade na profissão docente, dentro do contexto do estudo. Isso se deve ao fato de  que “as entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade, de aspectos não específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional” (MUYLAERT et al, 2014, p. 194). Assim, ao optar pela narrativa de uma professora, essa modalidade de entrevista pode criar uma possibilidade de aprofundar o diálogo entre mim e minha entrevistada.

MFC: Quais as principais conclusões?

RGM: Ao se reconhecer como mulher trans, Leona busca um certo distanciamento da travestilidade, ainda marcada pela negatividade, pelo senso comum de que travesti é sinônimo de prostituta. Por outro lado, Leona reivindica para si a identidade feminina, ao mesmo tempo em que se afasta também do estereótipo da mulher responsável pelos afazeres domésticos.

O momento em que Leona abraça sua identidade de gênero não pode ser desassociado da rejeição paterna, da transfobia que vivenciou no seio familiar e que lhe marcou de forma tão profunda. Essa gênese da Leona trans se dá no momento em que nasce a professora Leona e é, também nesse momento, que  ela necessita enfrentar a transfobia nos espaços escolares e em setores relacionados à área educacional. Para resistir à transfobia nas esferas familiar e laboral, bem como manter-se na profissão docente, foi fundamental o papel exercido pela sua rede de apoio social. Nessa rede, talvez a figura de sua mãe tenha sido a mais proeminente.

Pode-se dizer que a vida de Leona ainda continua marcada por muitas situações de preconceito e discriminação. Embora já atue na educação há um bom tempo, ela não conseguiu que seu nome social fosse adotado nos espaços escolares, tampouco ter sua identidade de gênero respeitada. Ainda é comum nesses espaços, Leona ser tratada como pertencente ao gênero masculino e pelo seu nome civil.

Apesar disso, ela faz da escola seu local de pertencimento, ainda que esse seja um espaço marcado pela heteronormatividade e que as situações de transfobia ainda possa ocorrer em seus intramuros.

Nesse sentido, a história de Leona é um exemplo de coragem e resistência à heteronormatividade, de subversão ao binarismo de gênero e de que é possível que pessoas trans ocupem outros lugares.

Todavia, a narrativa de Leona demonstra que ocupar esse lugar não é uma tarefa fácil, que é preciso uma dose enorme de coragem para enfrentar as heteronormas que regem a sociedade atual e que sobretudo exercem grande poder na esfera educacional.

Talvez o ingresso de Leona na docência só tenha sido possível, uma vez  que sua construção corporal só se iniciou  após ela ter finalizado seus estudos e se formado em pedagogia. Ainda que a trajetória escolar de Leona tenha sido marcada por preconceito e discriminação, não se sabe se ela teria conseguido permanecer nos espaços escolares se ela tivesse assumido sua identidade de gênero nesse período, pois diversas pesquisas demonstraram que a escola é um território hostil para estudantes trans e que muitas vezes elas não conseguem permanecer e dar continuidade aos seus estudos.

Não obstante, o ingresso de Leona como professora só foi possível na esfera pública, por meio de concurso de provas e títulos, assim como a grande maioria das professoras transexuais. Provavelmente, seu ingresso na docência não seria possível na rede particular de ensino, pelo menos em Congonhas, onde a maioria das escolas particulares de Educação Infantil possui vínculo com setores religiosos da igreja católica ou de grupos evangélicos neopentecostais, que sabidamente, tem se posicionado contra as demandas LGBT.

Outrossim, sua permanência enquanto docente se deve à estabilidade que o cargo púbico oferece, bem como à realização de um trabalho exemplar que não deixe margens para contestações e para utilização de subterfúgios para que ela seja reprovada em estágios probatórios, tampouco para abertura de processos administrativos contra ela.

A maior marca de seu trabalho, contudo, em meu ponto de vista, surge nas dinâmicas das relações com seus alunos e ex-alunos. A experiência de verificar in loco como era essa relação foi, sem dúvida, uma das mais gratificantes em toda a pesquisa. Ver o carinho que os alunos possuem para com Leona, foi, para mim, uma das sensações mais indescritíveis durante todo o processo.

MFC: Que novos caminhos seu trabalho aponta para uma continuidade de pesquisa?

RGM: A história de cada professora transexual embora possa trazer similaridades com as histórias de outras professoras trans, são únicas e dizem muito do local onde estão inseridas, do apoio familiar, das redes de apoio que lhes cercam. Desse modo, a continuidade da pesquisa pode se dar contando outras histórias de professoras trans, em outros contextos, apontando as semelhanças e divergências que as narrativas possuem.

MFC: Qual a sua trajetória profissional e como pesquisador?

RGM: Sou formado em Administração Pública, pós-graduado em Recursos Humanos. Sou servidor público federal na Universidade Federal de Ouro Preto desde 2008 e atuei com professor de cursos técnicos. Minha trajetória enquanto pesquisador ainda é incipiente. Como publicação, possuo um artigo publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional da Abrapso, intitulado “A Terceira Margem do Rio: os direitos humanos das pessoas trans”.

A defesa da dissertação ocorrerá dia 29 de janeiro, às 10h, no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da UFOP. O trabalho foi orientado pelo professor Marco Antônio Torres.

 

*Com informações da assessoria de imprensa da Universidade Federal de Ouro Preto.