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Tesouros do Rio Doce

Pesquisador analisou mais de 300 peixes da bacia do Rio Doce para caracterização genética da biodiversidade local, incluindo novas espécies que nunca tinham sido identificadas

No Laboratório de Genética da Conservação da PUC Minas, em Belo Horizonte, um tesouro perdido da biodiversidade brasileira está em processo de análise. São centenas de amostras de peixes da bacia do Rio Doce, coletadas ao longo de dois anos de trabalho, antes que a lama da barragem de rejeitos da Mineradora Samarco chegasse ao local. Sob a coordenação do professor Daniel Cardoso de Carvalho e em parceria com o Museu de Ciências Naturais da PUC Minas e o Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, no Espírito Santo, o grupo analisou 72 espécies de peixes, que foram alocadas em bombonas com formol nos museus. A coleção forma um catálogo da biodiversidade local, permitindo o levantamento genético dos 313 indivíduos selecionados.

Para esse estudo, o pesquisador utiliza uma técnica de identificação molecular chamada DNA barcode, na qual se sequencia uma parte do gene, gerando um código de barra genético para a identificação molecular das espécies. O processo resulta em um panorama da diversidade daquele universo de onde o peixe foi retirado. “Temos espécies nativas e espécies que foram introduzidas na bacia, além de outras que, até então, eram desconhecidas”, destaca Daniel.

O trabalho de coleta de dados foi concluído ainda em 2015, pouco antes de o acidente com a barragem de minérios contaminar o rio com a lama dos rejeitos. As informações podem servir como importante referência para estudos posteriores sobre a biodiversidade da bacia do Rio Doce, localizada entre dois importantes hotspots do Planeta: o Cerrado e a Mata Atlântica.

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Dezenas de amostras de peixes estão catalogadas no laboratório de genética da conservação da PUC Minas.

A pesquisa esbarra em alguns grandes desafios: “O processo tradicional de identificação e catalogação dos peixes é demorado. Precisamos verificar quais são as espécies novas dentre todos os peixes coletados, e identificá-las corretamente”, explica Daniel. O pesquisador destaca que, além das cerca de 10 novas espécies, existem outras em que há identificação do gênero, mas não do nome específico:

“O processo de dar nome a uma espécie pode demorar mais de uma década. Quando uma espécie não tem nome, não há como criar mecanismos para protegê-la”.

Uma análise preliminar dos dados já permitiu a identificação de uma diversidade críptica de peixes na bacia do Rio Doce: “As espécies crípticas são um  um grupo de peixes que, aparentemente, pertencem a uma única espécie mas, na verdade, são três ou quatro distintas. São muito parecidos morfologicamente mas, geneticamente, são bem diferentes”. A descoberta levou a um trabalho de revisão da morfologia das espécies, a partir dos dados do DNA:Quando separamos os peixes por grupos definidos pelas análises moleculares, vemos que eles têm padrões morfológicos distintos. Esses dados morfológicos vão dando elementos que reforçam a identificação de novas espécies”, explica Daniel.

As evidências de novas espécies são um sinal importante para os estudos em biodiversidade, já que a variedade de peixes na natureza é sinal de “saúde” no ecossistema. “Essa diversidade indica que existe uma cadeia alimentar complexa, que tem desde predadores de topo até indivíduos que se alimentam de micro-organismos e de frutos. Com o ecossistema conservado, as diferentes espécies aproveitam esses nichos da cadeia, permitindo que o ambiente se mantenha estável e saudável”, esclarece o pesquisador.

No entanto, o quadro se alterou profundamente após a chegada da lama com rejeitos de minério. Ele alerta também que antes mesmo da chegada da lama ao Rio Doce, a região já estava muito impactada: “A maior parte das espécies que vemos nas reportagens sobre os peixes mortos no rio não são endêmicas, ou seja, não eram originalmente daquela região, mas foram introduzidas pelo homem, são peixes exóticos”.

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Peixes analisados são conservados no laboratório para fins de pesquisas científicas

O professor estima que há pelo menos 27 espécies que já derivam novas espécies entre elas. Para organizar os dados e descrever todas, a expectativa é de pelo menos mais um ano inteiro de trabalho de pesquisa e catalogação. Posteriormente, as espécies ainda devem ser devidamente nomeadas seguindo critérios da taxonomia tradicional. O tempo, nesse caso, é um inimigo: “Quando isso tudo tiver sido feito, essas espécies podem nem existir mais. Essa morosidade do processo de conhecimento da biodiversidade é o que chamamos de impedimento taxonômico. Nós não temos pessoal e nem recursos suficientes para lidar com a nossa biodiversidade no Brasil”, lamenta.

O cenário é preocupante não apenas em relação à tragédia no Rio Doce: “Com a velocidade da degradação do meio ambiente, vamos perder grande parte de nossa biodiversidade antes mesmo de conhecê-la. O acidente acelerou o processo em muitas vezes, mas o quadro já vem acontecendo, gradativamente, em todo o território nacional”, alerta Daniel. A falta de profissionais da área de biologia especializados em taxonomia é também um sinal preocupante, pois faltam pessoas dedicadas à coleta e caracterização das espécies para posterior estudo genético.

“É preciso ampliar a preservação”

Preservar os rios do entorno do Rio Doce é, segundo o pesquisador, um ponto central para a recuperação da biodiversidade da bacia. Em Belo Horizonte, um projeto de lei em consulta pública propõe que o Rio Santo Antônio, que está em melhor estado de conservação na bacia do Rio Doce, seja declarado rio de preservação permanente, a fim de que não sejam mais realizadas alterações como construções de hidrelétricas ou obras de grande porte na região. “Se isso acontecer, esse ecossistema pode repovoar o trecho do Rio Doce atingido pela lama, assim que as condições ficarem novamente favoráveis à vida”. Essas condições envolvem não apenas a presença dos peixes, mas o crescimento da vegetação, a estabilização do pH da água e outras características próprias que tenham sido alteradas com a passagem dos rejeitos de mineração.

Pesquisas que visam ao entendimento do cenário atual para recuperação do rio incluem novas coletas de dados para fins de comparação e identificação: “O desafio agora é o monitoramento pós-desastre, a caracterização desse novo ecossistema, que a gente desconhece. Somente com dados da situação atual será possível determinar qual foi o real impacto, além de monitorar o que está acontecendo com a vida animal e vegetal naquela região, quais são as condições da água, etc”. A partir daí, a comparação dos bancos de dados poderá ser usada para traçar um retrato fidedigno das condições do rio antes e após o desastre ambiental.

Uma das consequências esperadas após o impacto da lama no rio é o que os pesquisadores chamam de “efeito gargalo”: “Com a redução abrupta do número de indivíduos, se esse quadro for mantido ao longo de muitas gerações de peixes, a diversidade genética daquela espécie é perdida permanentemente”. As espécies passariam a se reproduzir apenas entre poucos indivíduos, gerando crias comprometidas do ponto de vista evolutivo, tornando-se mais fracas e suscetíveis a doenças que podem dizimar todos os peixes de uma só vez. “A população pode até aumentar depois, mas seu potencial evolutivo estará comprometido para sempre”.    

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Delta do Rio Doce no litoral do Espírito Santo / Cortesia NASA.

O professor observa também que, mesmo após as chuvas e a chegada da lama ao mar do litoral do Espírito Santo, ainda há grande volume de rejeitos depositados no leito do Rio Doce, causando assoreamento. Dentre as perguntas sem resposta que podem gerar novas pesquisas, ele sugere: “O que faremos com isso? Vamos escavar o rio para tirar essa lama? O que tem nessa lama que pode afetar os peixes, a vegetação e outros aspectos do rio? Como a lama vai alterar o pH da água e como os organismos vão reagir a essa mudança? Ainda que os peixes sobrevivam, ou que a área seja recolonizada, será preciso acompanhar de perto todas essas variáveis. É uma situação única no mundo”.

Daniel Carvalho é da opinião de que as empresas envolvidas na catástrofe da mina de Mariana devem também mobilizar recursos para financiar pesquisas voltadas para a recuperação ambiental e preservação da bacia do Rio Doce. Para isso, é preciso que a comunidade científica se mobilize, mas também que haja mudanças na legislação. “Hoje, a própria empresa tem muito poder de escolha em relação aos investimentos e temas que serão dedicados às pesquisas e auditorias internas. É preciso rever essas regras”, conclui.

Verônica Soares

Jornalista de ciências, professora de comunicação, pesquisadora da divulgação científica.

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