Nos últimos dois anos, os trabalhadores domésticos no Brasil conquistaram importantes direitos trabalhistas. Da obrigatoriedade de ter a carteira assinada, passando pela regulamentação das horas de trabalho, até a mais recente implementação do e-social, esses trabalhadores veem-se cada vez mais amparados por leis que já regulamentavam, há muito tempo, outras atividades profissionais.
No entanto, para além do reconhecimento legal, subjaz nas relações em torno do trabalho doméstico uma série de questões que demandam um olhar mais atento. Dentre elas, chama a atenção o fato de esse trabalho ser, majoritariamente, realizado por mulheres, que vivenciam desde a desvalorização social da ocupação até o preconceito de classe, raça e gênero.
Diante desse contexto, destacamos o projeto de pesquisa “Empregadas domésticas: invenções de novas formas de existir e trabalhar”, que conta com financiamento da Fapemig. Nesse trabalho, Ângela Salgueiro Marques, coordenadora do projeto e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG e Enise de Castro Silva, bolsista de iniciação científica, lançam outro olhar para esse universo, buscando evidenciar as estratégias de reconhecimento e valorização criadas por essas mulheres.
As pesquisadoras trabalharam com relatos colhidos em entrevistas em profundidade, tendo como fio condutor um pequeno exercício no qual as empregadas domésticas e diaristas foram convidadas a escolher objetos importantes para elas.
“Esses seriam seus ‘tesouros’ e elas deveriam explicar o motivo dessa escolha, o que acabava por leva-las a reconstituir momentos ou episódios importantes de suas vidas, através daqueles objetos. A esses relatos damos o nome de ‘escritas de si, partindo da perspectiva trabalhada por Margareth Rago (2013), em A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções de subjetividade”, conta Enise.
Através do esforço de se reorganizar as narrativas de vida e do cotidiano, Enise destaca o fato de essas mulheres construírem formas de existir e trabalhar que são particulares e que destoam daquilo que é socialmente esperado delas.
“Não que elas deixem de cumprir com funções que lhes são dadas ou deixem de estar inseridas num contexto social atravessado por desigualdades e preconceitos de diversos. Mas, ao se colocarem como sujeitos ativos na configuração da própria imagem e do próprio trabalho que exercem, criam estratégias únicas para se fazerem reconhecidas e valorizadas no cotidiano do trabalho”, explica Enise.
A pesquisa ainda se encontra em andamento e teve seus resultados parciais apresentados na XXIV Semana do Conhecimento da UFMG, realizada em outubro. As pesquisadores destacam que, até o momento, foi possível perceber, através das falas de cinco mulheres entrevistadas, estratégias de valorização quando, por exemplo, em determinados momentos, elas fazem questão de ressaltar aquilo que possuem de singular e que acreditam ser o diferencial na hora de executar tarefas e, principalmente, de se manterem no trabalho.
“A gente pôde perceber que, no caso das mulheres que trabalham como empregadas, esse diferencial é construído tendo como base, principalmente, o relacionamento próximo com as pessoas das casas onde trabalham. No caso das diaristas, isso se dá pela relação de confiança, que tem como símbolo a entrega das chaves da casa e a ‘permissão’ para trabalhar quando não há ninguém no lar. No entanto, essas mulheres não deixam de revelar, em suas narrativas e histórias de vida, aspectos já apontados em estudos sobre o trabalho doméstico, como, por exemplo, a pobreza, a baixa escolaridade e a desvalorização social da ocupação e a vergonha em assumi-la diante dos outros”, relata Enise.
Conceitos importantes, como subjetivação (Jacques Rancière), sujeito (Michel Foucault), reconhecimento social (Jessé Souza), injustiça (Iris Young) e auto-valorização pelo trabalho (Jean-Philippe Deranty) guiam o estudo, não só na sua organização metodológica, mas também na análise dos relatos. Para Enise, além das complexidades decorrentes da articulação entre os conceitos e os dados obtidos nas entrevistas, é bastante desafiador olhar para o relato dessas mulheres e não mostrá-las em posição de vítima. “Esse exercício não é fácil, pois, ao mesmo tempo em que o objetivo é mostrá-las como sujeitos, que atuam imprimindo suas subjetividades na forma de trabalhar e encarar o ofício, temos a consciência de que as condições de mulheres, empregadas domésticas, com baixa escolaridade, entre outras coisas, as expõe a uma situação de estigmatização na sociedade”, pondera Enise.
Vale ressaltar que projetos como este cumprem não só com o papel de formar pesquisadores, mas também ajudam a desvelar realidades complexas, trazendo aportes teóricos e práticos para se refletir sobre importantes questões sociais. Como destaca a jovem pesquisadora:
“Acredito que uma pesquisa como essa é importante para mostrar o grande potencial criativo e político desses sujeitos numa esfera da vida que, nem sempre, encontra-se visível, quando consideramos contextos sociais mais amplos. É preciso mostrar que essas pessoas não estão “conformadas” dentro daquele rótulo, que lhes é socialmente designado. Além disso, fazer parte de uma pesquisa que se interessa pelo relato de vida e cotidiano das empregadas domésticas faz com que algumas dessas mulheres se sintam valorizadas e, pessoalmente, acredito que isso é importante até para que elas possam se empoderar e se sentir no direito de demandar espaços de fala e maior reconhecimento”, conclui.