A pergunta do título é direcionada a grávidas ao longo dos nove meses de gestação e aos médicos no momento do parto, quando os pais decidem manter surpresa sobre o sexo do bebê até o nascimento. No entanto, uma mutação genética pode causar um desarranjo na produção de hormônios na vida intrauterina, levando a criança do sexo feminino a sofrer um processo de virilização de sua genitália – ou seja, mesmo sendo menina, o bebê desenvolve o membro masculino. É a hiperplasia adrenal congênita, responsável por cerca de 50% dos casos de genitália ambígua.
A doença é de origem genética, uma herança autossômica-recessiva, ou seja, tanto a mãe quanto o pai precisam ser portadores de uma mutação em seus genes que, quando associados, resultam no desenvolvimento de uma criança com hiperplasia. O quadro está relacionado a uma anormalidade na secreção dos hormônios da glândula suprarrenal e pode aparecer em formas mais graves, desde a formação do bebê no útero da mãe, ou formas mais leves, que se manifestam na vida adulta.
Hormônios da glândula suprarrenal são indispensáveis para a vida. Com a mutação genética, na falta de uma determinada enzima para a secreção desses hormônios, o organismo reage, desencadeando um mecanismo de retroalimentação em que alguns hormônios passam a ser produzidos em grandes quantidades. Dentre os que são produzidos em excesso nessas circunstâncias, estão os hormônios masculinos, os androgênios. Como consequência, a criança do sexo feminino vai sofrer um processo de virilização de sua genitália.
“O que precisa ficar claro é que a criança, nesses casos, é do sexo feminino, é uma menina. Ela tem útero, tem ovário, mas sofre ação do hormônio masculino na vida intrauterina, então desenvolve uma genitália externa, podendo parecer um menino. Crianças do sexo masculino também podem ser afetadas, mas a presença do hormônio vai fazer pouca diferença quando nascem: você olha e vê uma genitália masculina. Todos os dois, no entanto, terão consequências para a saúde”, esclarece a médica Ivani Novato Silva, professora do Departamento de Pediatria da Escola de Medicina da UFMG. Ela coordena a divisão de endocrinologia pediátrica e um curso de especialização na área implementado há 10 anos, principal formador de recursos humanos nessa área em Minas Gerais.
Crianças que nascem com hiperplasia sofrem uma série de consequências, incluindo o risco de identificação incorreta do sexo, erros no registro de nascimento e desenvolvimento precoce da puberdade. No entanto, é mais grave o fato de que a hiperplasia adrenal congênita pode levar a óbito logo no primeiro mês de vida, pois causa uma insuficiência do equilíbrio hidroeletrolítico, ou seja, a criança pode se desidratar facilmente. “Se o quadro não for corretamente diagnosticado com rapidez, as crianças podem morrer”, alerta Ivani.
Diagnóstico e tratamento
Felizmente, o diagnóstico da hiperplasia adrenal congênita é feito a partir do teste do pezinho, exame obrigatório e gratuito em todo o território nacional, em que o sangue é coletado do calcanhar do bebê e que permite identificar também outras doenças graves, como o hipotireoidismo congênito (glândula tireoide do recém-nascido não é capaz de produzir quantidades adequadas de hormônios), a fenilcetonúria (doença do metabolismo), as hemoglobinopatias (doenças que afetam o sangue, como a doença falciforme) e a fibrose cística.
A hiperplasia adrenal congênita não é uma doença muito frequente: atinge 1 em cada 15 mil crianças, enquanto o hipotireoidismo acomete 1 a cada 4 mil, por exemplo. Além disso, os casos de genitália ambígua podem ter também outras causas. Somente o diagnóstico clínico e a realização de exames específicos garantem a identificação correta da doença, caso o exame do pezinho aponte para um aumento da dosagem de hormônios masculinos.
No Estado, Ivani Novato é responsável pelo programa de triagem neonatal em hiperplasia adrenal congênita, que realiza diagnóstico precoce da doença, beneficiando especialmente aquelas crianças acometidas pela forma grave, reduzindo a mortalidade neonatal e contribuindo para a correta definição do sexo nas meninas. O projeto faz parte do programa de intervenção precoce e atenção integral para Distúrbios Genéticos e Congênitos do Recém-nascido, que possibilita acompanhamento especializado multidisciplinar das crianças e é coordenado pelo Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio ao Diagnóstico (NUPAD), da Faculdade de Medicina da UFMG, em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde de MG.
O tratamento é feito a partir de reposição hormonal, por toda a vida, e começa imediatamente após o diagnóstico. Nos casos em que a genitália masculina é muito desenvolvida nas meninas, é feita intervenção cirúrgica assim que a criança passa da fase de recém-nascido e está apta e saudável para passar pelo procedimento. O acompanhamento é complexo e a cirurgia só deve ser feita por cirurgiões experientes. Nesse sentido, Belo Horizonte recebe os casos de todo o Estado e a equipe de Pediatria do Hospital das Clínicas da UFMG está preparada para atender e acompanhar os casos.
“O fato de a gente ter implantado a triagem em todo o Estado tem outros ganhos, além do diagnóstico dessa doença, já que o conhecimento sobre a questão da genitália ambígua se amplia entre os profissionais de saúde, fazendo com que outras crianças que apresentam o quadro se beneficiem e possam ser corretamente diagnosticadas”, esclarece a professora, que eventualmente recebe contatos do interior, de casos de crianças com genitália ambígua que não têm hiperplasia. O programa de triagem do Estado oferece treinamento mensal aos profissionais do interior do Estado, que se tornam multiplicadores.