Quem vê hoje a profusão de livros, sejam eles em formato real ou virtual, não imagina como antes da invenção da imprensa, por Gutenberg, no século XV, era complexa a criação e, principalmente, o acesso aos livros.
Exemplos emblemáticos do desejo de registrar e transmitir conhecimento entre os seres humanos, os livros acabam por estabelecer relação intrínseca com a cultura e a memória.
Apesar da reconhecida importância e do lugar de destaque ocupado pelos livros em nossa sociedade, é importante destacar que seu caminho nem sempre foi fácil. Dada a importância do registro do conhecimento, quem tinha o acesso e, sobretudo, a guarda da informação, detinha também o poder. Sendo assim, dependendo do conteúdo ali presente, do contexto político e social, a vida de determinado livro estava em risco.
Um dos mais ilustres sobreviventes dessa longa jornada percorrida pelos livros, no ocidente, encontra-se em exibição na Biblioteca Antiga do Trinity College , em Dublin, Irlanda. O Livro de Kells (The Book of Kells), datado do século IX, é reverenciado pela riqueza de suas iluminuras e, claro, por sua história. O manuscrito contém os quatro Evangelhos (João, Marcos, Lucas e Mateus) em latim, segundo a Vulgata, sem ser uma cópia exata desta última. O livro está escrito em pergaminho, em uma versão arrojada e bastante especializada da escrita daquele período, conhecida como “maiúscula insular”*.
O lugar de origem do Livro de Kells é geralmente atribuído ao mosteiro fundado por volta de 561, por São Colum Cille, em Iona, uma ilha ao largo da costa oeste da Escócia. Em 806, devido a um ataque Viking na ilha, os monges refugiaram-se no mosteiro de Kells, no Condado de Meath. Acredita-se que o livro possa ter começado a ser escrito no mosteiro de Iona, sendo finalizado em Kells. Tendo sobrevivido ao ataque Viking, o livro foi roubado na Abadia de Kells, tendo tido sua capa em ouro subtraída, assim como algumas de suas páginas (referentes ao evangelho de São João). Encontrado posteriormente, o livro permaneceu em Kells até 1654. Naquele ano, a cavalaria de Oliver Cromwell estabeleceu uma guarnição na igreja local. Por precaução, o governador da aldeia enviou o manuscrito a Dublin, visando garantir sua segurança.
Em 1661, o livro foi apresentado aos universitários do Trinity College por Henry Jones, que se tornaria bispo de Meath, durante o reinado de Carlos II. Salvo em poucas ocasiões, como exposições temporárias, o Livro de Kells nunca mais deixou o Trinity College. Desde o século XIX é objeto de uma exposição permanente e aberta ao público na Biblioteca Antiga da universidade.
Desde 1953, tem sido encadernado em quatro volumes. Dois volumes estão em exibição ao público: um deles exibe uma grande página decorada, enquanto o outro mostra duas páginas escritas. Os volumes são trocados em intervalos regulares.
A boa notícia é que não é necessário ir a Dublin para apreciar essa joia da cultura ocidental, no repositório online da universidade, encontra-se a versão digitalizada dos 339 fólios (páginas duplas). Clique aqui e navegue pelo Livro de Kells.
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*Consiste no uso das letras capitulares de grandes dimensões, não indentadas. As letras imediatamente seguintes à letra capitular também são maiores, mas vão diminuindo de tamanho. Posteriormente, as letras capitulares aumentaram ainda mais sua dimensão e ganharam cores. A decoração das capitulares insulares, especialmente as maiores, era geralmente abstrata e geométrica, ou representava animais através de padrões.