Antes de iniciar a leitura, um convite: acesse o canal @ctraldi, no YouTube, e se deixe levar pela sonoridade da obra deste músico de vanguarda. Tal exercício nos ajuda a compreender, com maior profundidade do que as palavras são capazes de expressar, o significado do projeto de pesquisa e extensão intitulado “Percussão eletrônica em tempo real: composição e performance”. O título remete aos DJs e shows de música eletrônica? Pois este universo vai muito além do repertório pop, e está marcado por 70 anos de história.
Quem explica a relação temporal entre percussão, eletrônica e tempo real é o professor e pesquisador César Adriano Traldi, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A começar pelos conceitos básicos. Percussão, por exemplo, vem de “percutir”, ou seja, “choque produzido pelo encontro de dois corpos”. Em tais instrumentos, portanto, obtém-se som por meio de impacto, raspagem ou agitação. Embora haja ampla variedade de dispositivos fabricados com finalidade percussiva, o batuque feito com objetos comuns já pode ser considerado como tal. Sendo assim, é possível produzir ritmo, em uma música, por meio do uso de tampas de panela, potes de alimento, mesas, cadeiras, caixas, talheres, pratos e copos, dentre outros.
“Cada cultura tem seus instrumentos. Historicamente, depois da voz humana, a percussão, com certeza, foi o primeiro a surgir por meio da exploração de uma casca, de uma semente, da pele de um animal”, explica o professor. Em muitos sítios arqueológicos, mundo afora, encontraram-se representações de pessoas dançando em torno de um tambor, ou usando rochas para produzir música melódica por percussão. Hoje, simplicidade e tecnologia se mesclam numa infinidade de instrumentos impossíveis de serem quantificados. Existem os rústicos, mas também aqueles complexos, como as baterias. “Talvez o maior exemplo disso sejam as fábricas especializadas em madeiras ou metais específicos para instrumentos avançados”, exemplifica.
Traldi lembra que música e tecnologia sempre caminharam juntas, o que possibilitou a criação de novos sons, timbres e sonoridades. No final do século XIX e no início do século XX, a eletrônica trouxe grandes modificações, tendo, como expoente, a guitarra, em contraponto aos instrumentos de corda antecessores. Tal potência sonora interferiu, inclusive, na quantidade de pessoas alcançadas: shows, antes restritos a pequenos grupos, puderam ser expandidos para milhares de pessoas.
Marco significativo dos anos 1948/50 são os movimentos, ocorridos na França e na Alemanha, nos quais os músicos passaram a gravar e a manipular sons eletronicamente, além de criar em estúdio. “Uma curiosidade deste momento histórico é que os compositores viram ali a oportunidade de se livrar dos intérpretes, nem sempre bem vistos, por promoverem mudanças nas obras originais”, conta o pesquisador.
Eletrônica em tempo real
Rapidamente, entretanto, compositores sentiram falta de um elemento complementar ao som – ou seja, da performance de palco e de seus recursos visuais –, e passaram a compor as chamadas “obras mistas”, mescla de sons trabalhados em estúdio com instrumentos tocados e manipulados em tempo real. No início, isso se deu com recursos analógicos, manejados mecanicamente. No final do século XX, com o aumento da capacidade de processamento dos computadores e os equipamentos mais acessíveis e portáteis, teve início o movimento conhecido como live music: o instrumentista toca, os sons entram no computador, por meio do microfone, são processados rapidamente e passam a compor a performance em tempo real.
Além disso, outros sensores podem ser usados, simultaneamente, para captar gestos, movimentos, cores e imagens. “O sensor eletrônico mais conhecido é o microfone, mas existem outros tipos, como sensores de movimento, luz, pressão. Eles podem ser usados tanto na construção de instrumentos musicais quanto na exploração de músicas, momento em ocorre a interação entre instrumento e sons”, destaca. Neste contexto, há, também, softwares como o Pure Data (Pd) e o Max/MSP, de programação gráfica para áudio e vídeo, usados como ambientes de composição interativos e como estações de síntese e processamento de sons em tempo real.
Essa modalidade de composição com eletrônica tornou-se uma das principais linhas de pesquisa do século XXI. Aí, entra o projeto de pesquisa do professor, realizado dentro do Núcleo Música Aberta da UFU (Numut). “Meu trabalho é estudar projetos composicionais e interpretativos (de performance) do repertório para instrumentos de percussão e dispositivos eletrônicos em tempo real, além de criar novas composições e entender como tocá-las”.
Tantas novidades em linguagens e técnicas composicionais exigem intérpretes cada vez mais versáteis, capazes de se adaptar, rapidamente, a diferentes contextos musicais. Neste sentido, as pesquisas desenvolvidas na UFU também auxiliam intérpretes no estudo e na compreensão desses métodos. “No meu caso, há grande foco na música de concerto, mas tal conhecimento se expande para a chamada música popular. Todos aqueles dispositivos que os DJs usam advêm dos experimentos e das composições que surgem e são criadas na música de concerto, em 70 anos de música eletrônica”, analisa Traldi.