A pandemia do novo coronavírus trouxe para o cotidiano palavras que antes estavam circunscritas a discussões muito específicas da ciência e, talvez, preprint seja uma delas.
Preprints, por definição, são versões prévias de um trabalho científico, que ainda não foram submetidas aos pares para serem avaliados. Com isso, esses artigos preliminares não passam pela leitura criteriosa e avaliação de mérito feita por outros cientistas, que, geralmente, são os responsáveis por atestar a validade de um artigo como produto de uma ciência ética, responsável e comprometida com o mérito.
Por que, então, preprints têm se tornado tão mais comuns nesses tempos de pandemia?
A resposta tem a ver com o TEMPO.
Mas, dentre outros argumentos que ajudam a chegarmos a uma resposta, está o fato de que “sobreviver à avaliação por pares não garante que uma pesquisa seja de alta qualidade“, ou seja, mesmo pesquisas que passam pelo processo de avaliação podem vir a ser posteriormente retratadas, como foi o caso da pesquisa que, equivocadamente, quis traçar relações entre as vacinas e caos de autismo.
O processo de avaliação por pares
O processo de avaliação por pares foi projetado e vem sendo utilizado há décadas para servir como uma espécie de “controle de qualidade“, que atesta que aquele trabalho de pesquisa cumpre requisitos necessários para ser considerado “boa ciência“. O problema é que esse processo costuma ser muito demorado, podendo levar meses entre a finalização de uma pesquisa e o momento em que ela se torna pública.
No meio de uma pandemia como a do novo coronavírus, o tempo não pode ser inimigo da ciência. Então, os preprints tornam-se alternativas mais ágeis de circulação de informações sobre as diversas iniciativas que buscam tratamentos e curas para a Covid-19, por exemplo.
“Preprints não são uma novidade, já existem há mais de três décadas, sendo bastante comuns em áreas como a Física. Com a Covid-19, tornaram-se ainda mais relevantes porque favorecem a rapidez da publicação de resultados”, conta Sigmar de Mello Rode, presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC Brasil).
“Como editor, minha angústia é saber que um artigo tem que passar por todo o processo de editoração e, sendo muito bom e urgente, isso pode atrasar o avanço da ciência em um momento crucial. Com o preprint, podemos disponibilizar mais rápido”, defende Rode.
Os servidores de preprint
Rode conta que, nos últimos anos, surgiram quase uma dúzia de novos servidores de preprint em todo o mundo – dois novos aqui no Brasil. Os servidores são parte importante desse mecanismo, pois garantem que nem todo artigo disponível livremente online pode ser considerado um preprint.
“Não é só escrever qualquer coisa e disponibilizar online. Na Scielo, por exemplo, o preprint passa por um revisor de área, que avalia se o trabalho foi executado de maneira correta, do ponto de vista do método científico, mas sem avaliar o mérito, que fica para revisão de pares”, explica Sigmar Rode.
Scielo é uma Biblioteca Eletrônica Científica Online, de livre acesso, que segue um modelo cooperativo de publicação digital de periódicos científicos brasileiros.
Ainda que permaneça o problema da dúvida sobre a informação prestada, se pode ou não ser considerada um avanço legítimo, o que Sigmar Rode e outros entusiastas do preprint argumentam é que nem os artigos científicos publicados em periódicos após revisão de pares estão livres de falhas. “Como todo artigo, devem ser lidos criticamente, estudados com atenção, para saber o que deve ou não ser citado”, comenta.
Pioneirismo no Brasil
Em abril de 2020, de maneira pioneira no Brasil, o Programa SciELO deu início à operação do servidor SciELO Preprints, com qualidade equiparável a servidores internacionais respeitáveis, e com o objetivo de disponibilizar, sob a forma de preprints, artigos de pesquisas e outras comunicações científicas antes ou em paralelo à sua avaliação e validação por periódicos científicos.
Embora aberto a todas as áreas temáticas, de imediato, o servidor se tornou importante mecanismo de comunicações relacionadas à Covid-19.
Também este ano foi implementado o repositório de preprints Emerging Researcher Information (EmeRI). a partir de uma cooperação entre a Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) e o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). O objetivo é prestar serviços às revistas e editores, de modo a agilizar a difusão de resultados de pesquisas científicas emergentes a partir da disponibilização de arquivos de preprints.
Abel Packer, co-fundador da Scielo e Diretor do Programa SciELO / FAPESP, argumenta que o cenário da pandemia está, de fato, contribuindo para uma percepção crescente de que ideias e soluções, propostas, remédios, vacinas, são produto de um processo, conhecido como método científico – e que os preprints colaboram para a aceleração responsável dos resultados da ciência.
“É um dos grandes efeitos da pandemia: governos bem intencionados e que querem acertar, se comprometem e fazem uso das melhores evidências científicas para tomar decisões“, comenta Abel Packer. Otimista, ele acredita que todo esse processo contribuiu para que o conhecimento derivado da ciência passe a ser mais referenciado.
Preprints e ciência aberta
Abel Packer relembra que quando pesquisadores começaram a postar seus resultados pré-avaliação por pares, buscavam uma forma de fazer melhor e maior uso de resultados da ciência, além de otimizar recursos e investimentos socioeconômicos em pesquisa científica.
“No processo de comunicação da pesquisa, a todo momento, há centenas de artigos sendo publicados simultaneamente, que são grãos de areia no empreendimento científico. Muitos deles são fruto da introdução de uma lógica comercial ao conhecimento, a partir das grandes editoras, que passaram a criar critérios de impacto da pesquisa e de produtividade. Há coisas geniais, mas há chance de erros. Isso gera um ciclo perigoso: em nome da produção, há o risco de um cientista não ser ético e falsificar dados para dar conta das cobranças da carreira”, comenta Abel Packer.
Ele defende que o controle de qualidade da ciência deve ser buscado nos pares, mas que a disponibilização pública de uma pesquisa antes desse processo implica também na responsabilidade de autores e no fortalecimento de princípios de ciência aberta, principalmente em relação aos dados utilizados nas pesquisas.
“Para produzir ciência de qualidade, o conhecimento deve ser generalizável, replicável. Que se comunique para que outros possam replicar. Como é que eu garanto que a pesquisa é replicável? Preciso saber como ela foi feita, abrir os dados, entender os bastidores. Com o preprint, o autor assume esse processo de abertura e coloca a pesquisa para escrutínio, comunicando o resultado do processo e disponibilizando seu trabalho para teste”, detalha.
Ele comenta que, em geral, autores e autoras submetem seus artigos para colegas e leitores críticos antes de submeter aos servidores de preprint, o que acaba criando outras camadas de revisão informal: “O autor também não quer colocar o próprio nome e a carreira em risco, disponibilizando uma publicação que pode causar problemas para si”.
Percepção pública da ciência
Abel Packer acredita que a pandemia também contribuiu para um aprofundamento da percepção pública da ciência, já que não-especialistas passaram a lidar, cotidianamente, com palavras como preprint e conceitos epidemiológicos como achatamento da curva, R da doença, dentre outros:
“Esses termos estão sendo popularizados, assim como webnários e lives sobre ciência, que reforçam o papel da universidade e da ciência na solução de problemas com uma complexidade infinita, que demandam otimizar o método científico”.
Ele defende que periódicos científicos devem se apropriar do preprint como instância de publicização de resultados da ciência, como início de um fluxo de publicação:
“O depósito do preprint pode ser uma etapa fundamental da pesquisa. O preprint nasce disruptor, mas é feito por pesquisadores, financiado por agências de pesquisas e as regras da ciência continuam valendo, mais do que nunca. Nesse sentido, o papel da revisão por pares seria uma etapa de validar um conhecimento que já está disponível, não mais publicar novidades“.
Sigmar de Mello Rode, da ABEC Brasil, reforça: “A ciência aberta é uma realidade inexorável. Há muita gente ainda resistente, mas ela não tem mais volta. A base da ciência aberta é a integridade, porque você está disponibilizando informação a todo mundo”, conclui.
Saiba mais:
- Acesse o ArXiv, um dos mais antigos e consolidados repositórios de preprint, vinculado à Universidade de Cornell, nos Estados Unidos.
- Conheça também o EmeRI, repositório de preprints implementado em 2020 a partir de uma cooperação entre a Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) e o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict).
- Leia estudos preliminares sobre a Covid-19 feitos por cientistas brasileiros.
- Conheça o curso livre da Fiocruz: “O que é ciência aberta?“.
- Leia artigo de Sigmar de Mello Rode sobre a relação entre ciência aberta e preprints.