*Artigo de Luciano Satlher, PhD em Administração pela FEA/USP. Membro do Comitê de Educação Básica da Associação Brasileira de Educação a Distância. Reitor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e diretor do Colégio Metodista Izabela Hendrix.
A pandemia impôs o distanciamento social a cerca de 1,4 bilhão de estudantes e 63 milhões de professores em todo o mundo, que ficaram impedidos de frequentar os espaços físicos das escolas e instituições de educação superior. Trata-se de uma situação inédita na escala e velocidade que ocorreu. Acontece em uma época com disponibilidade de ampla gama de recursos digitais, ainda que distribuídos de forma desigual entre os diversos extratos sociais.
Essa situação inédita acabou por escancarar uma série de problemas no segmento educacional. Foi preciso reorganizar as atividades acadêmicas e muitos tentaram migrar para o ensino remoto emergencial, diante da possibilidade de longa duração da suspensão das atividades escolares presenciais por conta da pandemia da Covid-19.
Veio à tona a desigualdade do acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Em 2019, eram 20 milhões de domicílios brasileiros que não tinham acesso à internet, 28% do total. Além disso, dos que tinham acesso, 58% acessaram a internet somente pelo celular – muitas vezes por planos que não contemplam largura de banda adequada para assistir a uma videoaula, por exemplo. Essa situação se agrava na população mais empobrecida e a precariedade coincide com os extratos sociais onde é mais crítica a chamada crise de aprendizagem, a constatação de que muitos dos alunos chegam ao final de sua jornada na escola e na educação superior com profundos déficits em relação ao que deveriam ter aprendido.
O regime emergencial de aulas remotas ora adotado por várias instituições educacionais e sistemas de ensino é algo muito diferente de um programa de Educação a Distância (EAD) de boa qualidade. A situação em que nos encontramos é complexa e desafiadora. Um movimento em massa de professores inexperientes, pouco capacitados previamente e com suporte insuficiente, que ora experimentam aulas com recursos digitais, tende a não ser tão bem-sucedido quanto desejável. Também há aqueles professores que foram obrigatoriamente incorporados após terem resistido por anos à EAD. A sala de aula exposta na internet ou na TV acaba por ressaltar o quanto a abordagem tradicional é profundamente falha.
O modelo praticado pela maioria dos sistemas educacionais ainda se baseia nas demandas da Sociedade Industrial, sendo que hoje estamos na Sociedade da Informação, uma época marcada pela aceleração da mudança propiciada pela globalização e o uso intensivo de tecnologia.
No Século XIX, as aulas passaram a ser padronizadas, unidirecionais, centradas no professor e no silêncio obsequioso dos alunos. A organização do currículo tem sido planejada desde então em séries e disciplinas, o que caracteriza uma fragmentação do saber em unidades especializadas do conhecimento que tendem a dialogar pouco ou nada entre si. A estrutura hierárquica cristalizada na escola desestimula a participação de alunos e da comunidade. São muitas as características anacrônicas que permanecem em vigor, com pouca ou nenhuma modificação.
A maioria das práticas tradicionais em salas de aula, ora aplicadas no campo digital, baseiam-se em metodologias de ensino inspiradas na ultrapassada linha de produção industrial. Não incorporam, por exemplo, a experiência de aprendizagem cooperativa, quando estudantes são convidados a usarem as redes digitais para criarem seu próprio conteúdo, colaborarem entre si e participarem de comunidades virtuais de aprendizagem, no que se torna uma poderosa ferramenta de engajamento e auto-organização, dentro da lógica dos recursos educacionais abertos.
A experiência massiva com as TIC por educadores, gestores educacionais, alunos e famílias abre oportunidades para a transformação digital na educação de uma forma mais democraticamente distribuída.
Dentre as mudanças necessárias está a personalização das relações de ensino-aprendizagem, que atende melhor o novo perfil dos alunos, especialmente os da chamada geração internet.
Ampliar a aplicação de metodologias ativas e do blended learning, para tornar as aulas expositivas menos maçantes e gerar mais aprendizagem significativa.
Tornar o voluntariado e a inserção no setor produtivo parte dos projetos de vida dos estudantes, com todos os participantes a comporem comunidades on-line que gerem micro-certificações capazes de identificar as trilhas de aprendizagem percorridas de forma individualizada e por toda a vida.
Promover iniciativas de construção de uma cidadania global, com interações entre discentes e docentes de vários países, facilitadas pelas ferramentas de videoconferências e tradução simultânea automatizada.
Equilibrar a ênfase na formação STEM (ciência, tecnologia, engenharias e matemática), potencializada por laboratórios remotos ou virtuais, ensino de pensamento computacional, uso de realidade aumentada e gêmeos digitais; com as competências socioemocionais – especialmente o pensamento crítico e os debates internacionais sobre meio ambiente e enfrentamento das desigualdades.
Ou seja, é preciso aproveitar o impulso da crise para gerar um novo patamar na educação brasileira, que seja mais inclusiva, capaz de se transformar sem perder a essência, para reposicionar positivamente o país nas cadeias produtivas globais e aumentar as chances de sucesso para os estudantes de qualquer classe social.