*Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência
Kofi Annan, ex-secretário geral das Nações Unidas, ONU, observou que era muito difícil justificar aos jovens que os direitos de propriedade valem mais do que os direitos humanos.
Direitos de propriedade que, ao dificultar o acesso às informações científicas, não permitem à ciência contribuir para dar significado moral ao mundo.
Os resultados das pesquisas devem circular livremente para que possamos verificar se os resultados são consistentes e, de fato, aliviam a ‘fadiga humana’ de todos e não só de alguns e não comprometem o ambiente em que vivemos.
Sabemos, por exemplo, que os testes clínicos dos medicamentos, sejam eles positivos ou negativos, são considerados propriedade dos fabricantes pelos tratados internacionais que regulam a propriedade industrial.
Só eles determinam se podem ou não ser divulgados, podendo assim impedir a produção de genéricos e as pesquisas em medicamentos.
Devemos defender que a pesquisa científica fundamental, em qualquer área, deve ser realizada em instituições laicas, comprometidas em divulgar as descobertas e informações que produzem, dando a elas o pleno domínio público.
As informações cientificas resultantes das pesquisas, na sociedade ou na natureza, não podem gerar segredos de negócios, de propriedade de alguns. Os segredos geram monstros.
Devem, isso sim, ser realizadas em instituições laicas e públicas que respeitem os direitos humanos acima de outros interesses, sejam eles de propriedade, econômicos ou religiosos.
Pelo valor próprio do conhecimento, nas ciências humanas, ambientais e naturais, e sua influência na sociedade, as instituições cientificas devem ser conduzidas democraticamente e ser obedientes às determinações da Constituição que rege o pacto de cooperação social do País em que vivemos.
Uma Constituição que afirma o apoio do Estado à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, e defende que o acesso à ciência, saúde e a educação são um direito de todos os cidadãos brasileiros. Um direito de todos os seres humanos.
Aprendemos também, nestes dias dramáticos, que a solidariedade e a indignação, além da ciência, são também necessárias, para que possamos atribuir valor moral ao mundo em que vivemos.
Aprendemos que para promover o progresso da ciência com ética devemos, além de cientistas, ser também cidadãos solidários e indignados, participar da vida política do país.
A Constituição de 1988, que selou a derrubada da ditadura e estabeleceu um novo programa de direitos e deveres para a nossa sociedade, determinou que a boa saúde como a boa educação devem ser garantidas a todos e os recursos necessários devem ser encontrados para que bem funcionem em toda parte.
Verificamos com a trágica pandemia da Covid-19 que estes sistemas não funcionam como previsto. O demonstram a tosca desobediência às recomendações de confinamento e a criminosa falta de hospitais e UTIs equipadas. Aqui no Amazonas, os municípios do interior não têm hospitais equipados com UTIs e muitas vezes distam dias de barco dos primeiros socorros.
O sistema de saúde público atento aos direitos humanos de todos foi sabotado em favor de interesses de poucos. Dominado pelos direitos de propriedade e valores de mercado se mostrou incapaz de oferecer os progressos do conhecimento e da ciência para combater a pandemia. Outros países com sistemas de saúde mais sólidos o combateram melhor.
Outros ainda, em que o sistema de saúde privado prevalece, sofreram o mesmo revés. A pandemia demonstrou tragicamente as consequências do domínio do direito de propriedade sobre os direitos humanos.
Para que a ciência possa de fato contribuir para combater pandemias, a da Covid-19 e outras, deverá defender de modo intransigente o domínio público da informação cientifica e os princípios de livre circulação do conhecimento.
Nestes dias lemos que os laboratórios que buscam encontrar a vacina para a Covid-19 têm trocado informações sobre os sequenciamentos dos genomas do vírus e suas mutações. É um passo importante.
Circulou, dias atrás, a notícia que Donald Trump, presidente dos EUA, queria comprar os direitos de propriedade exclusiva de uma vacina anti-Covid 19, produzida na Alemanha.
Não foi atendido pelo laboratório que estava desenvolvendo o medicamento. Mas revelou que uma vacina, que poderia contribuir para aliviar os sofrimentos na pandemia, poderia ser propriedade de uma só nação.
Se isso vier a ocorrer, como iríamos explicar aos jovens que os direitos de propriedade de um país valem mais do que os direitos de todos os humanos.