Eles são marginalizados pelas narrativas que buscam valorizar os grandes feitos e espetáculos. No universo do futebol, nos lembramos sempre dos bons jogadores e treinadores, as jogadas incríveis e os gols memoráveis. Quem é o personagem que fica para escanteio? O árbitro.
Ele acaba esquecido pelas versões oficiais da história, mas certamente guarda recordações importantes para remontar os detalhes dessa paixão nacional. Pensando em preservar essas memórias, o pesquisador Gabriel Farias Alves Correia, autor da dissertação Uma grande solidão em meio à multidão: histórias e memórias da arbitragem de futebol de Minas Gerais entrevistou 21 ex-árbitros de futebol e coletou relatos preciosos.
O objetivo do estudo, defendido no Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração, da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é valorizar as histórias de sujeitos que, muitas vezes, são esquecidos. Além disso, compreender os árbitros como gestores, apresentando outras formas de pensar a Administração.
“O saber produzido pelo árbitro de futebol se caracterizou como originado desde outras formas não-centrais de gestão, que não a acadêmico e universalizante do mainstream. A sujeito que é árbitro foi considerado para nós um profissional que necessita se dedicar, muitas das vezes com jornadas duplas ou triplas de trabalho, para manutenção do alto nível. Ou seja, o árbitro de futebol é um trabalhador precarizado”, afirma.
As entrevistas ajudaram a pensar como a gestão pode ser variada, pois o árbitro é um gestor cada vez que ele precisa improvisar para manter a dinâmica de um ambiente. “Uma gestão criativa, cotidiana, ordinária que se constitui durante o seu exercício”, avalia o pesquisador.
Segundo o Gabriel Correia, os ex-árbitros relataram enfrentar, muitas vezes, oito horas em trabalhos que nada tem a ver com o futebol, para, logo em seguida, se preparar fisicamente e tecnicamente para apitar os jogos. “Além disso, ele precisa ter uma condição financeira favorável que lhe permite dedicação às atividades. Para manutenção no meio, os ex-árbitros nos relataram exercer atividades profissionais com horários flexíveis ou com a possibilidade de banco de horas”, explica.
Tripé dos árbitros de futebol
A escolha dos entrevistados se deu por uma técnica chamada “bola de neve”. O Sindicato dos Árbitros de Minas Gerais cedeu contato de árbitros jubilados da Federação Mineira de Futebol (FMF). A cada novo entrevistado, o pesquisador pedia outras indicações. “Após transcrever na íntegra todas as entrevistas, utilizamos a técnica de análise de narrativas agrupando os trechos em temas relacionados, seguindo uma sequência lógica de contextualização social no futebol, início na arbitragem, a chegada e progressão no futebol amador, o alcance do futebol profissional e o fim da atividade”.
Também foram levantadas as questões sobre profissionalização da arbitragem, as tentativas de suborno, a organização em torno de entidades representativas, o relacionamento com as entidades que organizam o futebol como FMF, Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA), além da relação entre o sindicato dos árbitros e a federação estadual.
A pesquisa de Gabriel Correia ajuda a discutir uma dinâmica de submissão dos árbitros ao autoritarismo das entidades de organização do futebol necessárias para sobrevivência e manutenção no meio. Além disso, evidencia o universo de incertezas quanto à atividade, que passa por uma precarização do trabalho complementada por uma insegurança laboral, tendo em vista a ausência de garantias profissionais que a atividade tem no país.
Por fim, retrata como a arbitragem é afetada pelas ingerências políticas relacionadas ao jogo de poder de federações, confederações e clubes de futebol, além das ingerências interpessoais, em que a simpatia de dirigentes se sobrepõe aos critérios objetivos estabelecidos pelas entidades do futebol para crescimento da carreira do árbitro.
Bate-bola com o pesquisador
MFC: Comente as suas motivações para desenvolver este estudo.
Gabriel Correia: Foi um estudo que começou a partir de meu interesse particular pelo futebol. Acompanho de perto a prática profissional como torcedor, tentei ser jogador de futebol e atuei no ano de 2009 na categoria de base do futebol amador de Belo Horizonte. A princípio, o trabalho seria sobre as memórias do futebol amador da cidade. Ao iniciar o trabalho de reconhecimento do campo, fui a uma reunião que a prefeitura de Belo Horizonte fez com a intenção de transformar o futebol em patrimônio imaterial da cidade. Lá, tomei conhecimento do Sindicato dos Árbitros de Minas Gerais (SAMG) e conversando com seu vice-presidente, despertou em mim uma ideia de estudar essa organização. Levei a ideia até meu orientador Alexandre Carrieri e ele gostou, tendo em vista que atende a agenda de pesquisas desenvolvidas pelo nosso grupo de pesquisa, o Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS). Como meu foco de estudo são as memórias na Administração, dei um passo atrás e invés de estudar o sindicato, optamos em conjunto por estudar os sujeitos que compuseram, em um sentido mais macro, a arbitragem de futebol do estado e que já haviam sido jubilados do quadro da Federação Mineira de Futebol (FMF).
MFC: Conte a sua história preferida entre todas que ouviu dos 21 ex-árbitros entrevistados.
Gabriel Correia: Não sei se preferida, pois foram diversas histórias interessantes. Mas os casos de violência no exercício do futebol amador me marcaram muito. Um dos casos, o árbitro tomou conhecimento do histórico de confusões envolvendo duas equipes e foi realizar a atividade com uma arma de fogo. Ao fim do primeiro tempo, um de seus amigos na arquibancada ouviu conversas sobre agressão ao árbitro que partiria do goleiro da equipe da casa, que era faixa preta em uma arte marcial. Ao voltar para o segundo tempo, o árbitro deixou a arma na cintura. Esse goleiro, fez um pênalti de tal modo que precisava ser expulso e assim foi feito. Ao retirar o cartão vermelho, o goleiro partiu pra cima desse juiz que tirou o revólver e gritou que “não vem não que eu te mato”. Ele percebeu que os membros da equipe começaram a cercar e ele manteve a posição falando “sai de trás de mim que eu vou atirar”. Nisso, o árbitro não foi agredido e o jogo foi encerrado por ele. Foi uma situação inusitada, mas que reflete como que o árbitro precisa lidar com o temor das agressões físicas, sobretudo no futebol amador.
MFC: Qual a maior contribuição da dissertação para a área da Administração?
Gabriel Correia: Além de pensamos no árbitro de futebol como gestor, como um sujeito que gere interesses, foi possível também abrirmos outras possibilidades de gestão a partir de figuras que, em um primeiro momento, não seriam protagonistas no jogo-gestão. Essa é a nossa maior contribuição para a área. Estudar as memórias dos gestores e criadores no cotidiano é a grande lacuna que buscamos preencher. Pontuarmos as gestões que não somente as do topo da hierarquia, retirando a centralidade da organização-empresa, é um movimento local para sobrelevarmos os pequenos fazeres, cotidianos, práticos. Pensamos o organizar e suas práticas, sejam elas do passado ou do presente. A gestão é múltipla e, a partir da ideia de vida social organizada, podemos pensá-la sob diversos olhares, não só nos limites empresariais. Pensamos então a gestão local e o saber local para falar de memória de grupos sociais que não são protagonistas quando na dinâmica social.