Após quatro décadas de escavações, André não perdera a majestade.
”Tornar-se arqueólogo, meus queridos, é aprender a desassossegar a alma do tempo”, dizia aos companheiros de bússolas, pás, escalas, picos, colherins, pincéis e outras parafernálias, sempre ansiosas por desnudar o invisível.
Permanecia ele a coordenar os trabalhos exploratórios na Mina do Silêncio, com a nobre galhardia dos indivíduos habituados a tatear a fluida tez do impalpável.
Por sob as sombras do passado infindo, asas de xícara, adagas insalubres, fragmentos de vida alheia. Tudo enovelado às vísceras da Terra, como a delinear, para muito além de usos e moralidades, a secular estética do escombro.
Tudo, enfim, entregue às retinas de André, pérolas ávidas por vestígios da solidão de outrora. Cada mísera peça, afinal, servia-lhe, de algum modo, como indício à elucidação de seus próprios cacos de existência.
Daí a mudez taciturna do grande especialista, a examinar o objeto que, no dia lanhado de espinhos, acabaria por lhe ferir os dedos – e a já vacilante civilidade.
Daí o peso sobre sua espádua de pai (e filho e marido e amigo) ausente, então obrigado a reconhecer a desarticulação das próprias formas, quem diria, no mais ridículo estilhaço, que, conforme intuía sua expertise, refletira egos, lágrimas e sorrisos banais.
Nas mãos de André, renomado arqueólogo a esmiuçar inauditos segredos de extintas sociedades d’além mar, aquela infame lasca de espelho – polido em metal, há exatos cinco mil anos – haveria de lançá-lo, qual poeira em tornado, às profundezas do mitológico Vale dos Homens sem Face.