Pedro Val é um apaixonado pelas paisagens:
“Eu sou um cientista que tem paixão por paisagens, por entender como elas mudam ao longo do tempo e o que controla essas mudanças“, contou ao Minas Faz Ciência.
“Acho fascinante poder olhar para uma paisagem e, com algumas suposições e informações básicas sobre a região, ter um chute bem informado sobre a velocidade com que a paisagem é erodida ou modificada ao longo do tempo.
Isso torna passeios turísticos mais interessantes, pois passo a refletir sobre quanto tempo se passou desde que a paisagem se formou. Quando isso se coloca em perspectiva temporal, é de tirar o fôlego, assim como ver as ruínas de civilizações passadas, por exemplo”.
Professor e pesquisador do Departamento de Geologia da Escola de Minas, na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Pedro reconhece sua trajetória privilegiada na ciência.
Filho de pesquisadores biólogos, conviveu diariamente com o ambiente acadêmico e foi influenciado para que também seguisse a carreira.
Graduado em Geologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), trabalhou com paisagens durante a graduação e teve oportunidade de fazer intercâmbio acadêmico, além de duas iniciações científicas como voluntário.
Sua carreira como pesquisador conta com a realização do doutorado na Syracuse University, em Nova Iorque, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Lá, Pedro especializou-se na técnica de isótopos cosmogênicos, que ajudam a quantificar a velocidade com que diferentes superfícies na Terra são erodidas (ou não).
“No doutorado, meu foco eram as paisagens montanhosas dos Andes, na parte central da Argentina mas também na Amazônia”.
Depois, o pesquisador ingressou no Scripps Institution of Oceanography, onde fez um estágio pós-doutoral e continuou trabalhando com isótopos cosmogênicos, com montanhas e com a Amazônia, sob tutela de Jane Willenbring, pesquisadora que vem se destacando fortemente nas geociências.
Nesta reportagem, Pedro Val fala sobre sua pesquisa financiada pelo Instituto Serrapilheira, que investiga pistas sobre o passado geológico da Amazônia no DNA de peixes. O projeto “Evolução da Amazônia Controlada por Captura de Drenagem é conhecido como “AMERICAS”.
A seguir, o pesquisador explica a correlação entre peixes, rios e paisagens, e destaca a importância de observações geológicas e biológicas para entender aspectos complexos das mudanças das paisagens naturais.
O que aprendemos ao observar paisagens
“É fascinante conseguir colocar uma idade de até alguns milhões de anos (!!!) em feições da superfície da Terra e, ainda por cima, usando raios cósmicos, ou seja, raios altamente energéticos que se propagam no universo que entram na nossa atmosfera”, comenta Pedro, sobre sua rotina de cientista observador de paisagens.
Mais do que um profissional da ciência, ele é um entusiasta dos saberes possíveis que se manifestam quando o método científico orienta nosso olhar para o mundo. “É fascinante também poder inferir algo que está acontecendo no interior do planeta, que não conseguimos ver através da paisagem”, completa.
Longe do estereótipo de cientista inalcançável preso em uma torre de marfim, Pedro considera-se “uma pessoa como outra qualquer, com incertezas, com um pouco de insegurança, eternamente aprendendo sobre coisas e constantemente sendo provado da minha ignorância“.
A importância da ciência básica
“O apoio financeiro à pesquisa básica é crucial. A escassez de recursos para financiar a pesquisa é um sintoma mundial, porém no Brasil tem sido agravado rapidamente por questões políticas”, lamenta o pesquisador.
No caso do estudo que desenvolve atualmente, ele argumenta que até em condições ideais é especialmente difícil obter financiamento para explorar fronteiras científicas, com risco moderado a alto de não gerar os resultados esperados – é isso que chamamos de ciência básica.
“Neste sentido, o financiamento do Instituto Serrapilheira é uma janela que traz para o Brasil a chance de se destacar em perguntas fundamentais que são de importância internacional. Em particular, para a área que pesquiso, é realmente uma oportunidade única no Brasil e no mundo”.
Segundo Pedro, a ciência da geomorfologia e evolução de paisagens no Brasil tem pouca visibilidade até mesmo entre geocientistas brasileiros.
“O objetivo é trazer um pouco de foco para essa área no Brasil e eu espero poder tirar proveito disso”, comenta o pesquisador.
O projeto AMERICAS, apoiado na segunda chamada do Instituto Serrapilheira, junta conceitos ainda da fronteira do conhecimento na geociência e na biociência.
Correlações entre o passado geológico da Amazônia e o DNA dos peixes
Imagine que você está em um trem, indo visitar sua cidade favorita.
Após longas horas de viagem, você chega no fim da linha sem aviso, sem saber onde chegou e, pior, as linhas de trem que ficaram pra trás já trocaram de configuração e você não consegue mais voltar ao caminho por onde veio.
O que aconteceu? Houve uma mudança drástica no seu entorno, sem que você tivesse controle algum sobre isso.
Agora, pense nos rios como se fossem vagões de trem e em seus vales como os trilhos. O passado geológico pode ter tido diversas configurações de vales (trilhos), que, possivelmente, estão ainda hoje preservadas na superfície, mas não possuem mais rios (trens) fluindo sobre eles (vales abandonados).
Esse abandono de configuração dá lugar a uma nova configuração, em função de processos geológicos que desconectam alguns rios (trilhos) e conectam outros.
A captura de drenagem é, segundo Pedro, um dos processos capazes de reconfigurar o que se sabe sobre o acontecido narrado na história acima.
“Ela, frequentemente, deixa pistas na aparência da paisagem e, ainda, resquícios (sedimentos) da configuração passada”, explica o pesquisador.
Agora imagine que os rios são a casa dos peixes. Imagine, então, que uma mudança na configuração dos rios e vales pode afetar a distribuição dos peixes – como afetou você, no trem que mudou de trilhos.
Essa separação, na maioria dos casos, é irreversível, coloca a mesma espécie de peixes em posições diferentes da paisagem, como se os peixes mudassem a vizinhança.
A partir daí, a mesma espécie, em cada lado separado, seguirá um caminho evolutivo diferente, e isso fica registrado no DNA dos peixes, aumentando o grau de parentesco entre eles de maneira sistemática: “Isso pode ser analisado através de análises genéticas”, explica Pedro.
Caminhos para novas descobertas
O pesquisador pretende abordar o tema descrito acima pela visão geológica, estudando as configurações passadas dos rios, e pela visão biológica, estudando o DNA dos peixes.
Isso, de maneira integrada, permitirá estudar o real registro de uma mudança na paisagem no DNA dos peixes. É possível que existam exemplos disso no mundo inteiro. A evolução dos peixes próximos aos Andes, por exemplo, é diretamente influenciada pelo soerguimento daquela cadeira de montanhas. O projeto AMERICAS avaliará se isso existe de maneira sistemática na porção leste da Amazônia.
A pesquisa ainda está na fase de produção dos dados.
Em julho de 2019, a equipe de Pedro foi ao Pará para coletar mais de 300 peixes de maneira sistemática para estudar o seu DNA. Os peixes encontram-se no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
Minha principal colaboradora, não por coincidência, minha mãe, Dra. Vera Val, irá estudar os dados genéticos gerados, que serão também analisados pelo colaborador Dr. James Albert, da Universidade de Louisiana em Lafayette.
No mesmo campo, os pesquisadores coletaram amostras de sedimentos em posições-chave dos rios para fazer datação do momento em que a configuração dos rios mudou. Até o momento, a equipe tem resultados de experimentos computacionais.
Meus colaboradores Dr. Nathan Lyons e Dra. Nicole Gasparini, da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, produzem modelos numéricos de evolução de paisagem baseados em leis erosivas. Acoplados a estes modelos estão algumas leis simples de evolução dos peixes. Quando experimentados juntos, os modelos reproduzem parte do que observamos na natureza em termos de riqueza de espécies.
De acordo com Pedro, a pesquisa segue uma direção promissora, que indica que há uma conexão fundamental entre a evolução do terreno e dos organismos que habitam ele.
Se comprovada a relação direta entre os processos, há um grande potencial para expandir para uma linha de investigações que vai explorar até que ponto a velocidade de modificações da paisagem causa mudanças na velocidade de processos biológicos, como a taxa de extinção, por exemplo.
Resultados desse estudo podem reconfigurar a maneira com que biólogos estudam a biogeografia e biodiversidade, e como geólogos e geógrafos estudam a paleogeografia e o paleoambiente.
O potencial para as geociências (meu campo) é de que, caso haja registro de mudanças na paisagem nos peixes, possivelmente a primeira amostra que um geólogo poderá coletar no campo será um peixe.
Os desafios da pesquisa
Fazer pesquisa de campo na Amazônia não é tarefa fácil.
Novas descobertas científicas, fruto de estudos conduzidos na região, requerem que os pesquisadores estejam em campo em condições extremas, de baixo acesso e com riscos elevados.
Portanto, Pedro destaca a importância do conhecimento do povo local e também o apoio logístico de agências que administram áreas de proteção como o Ideflor-bio. “É um órgão fundamental para o desenvolvimento científico da região, além do óbvio papel para o qual foram criadas”, comenta.
Ele também deixa um recado aos leitores do Minas Faz Ciência e amantes do conhecimento:
É importante enfatizar que a ciência não serve somente para ser aplicada em algo imediato, para se obter soluções inteligentes ou avanços de curto prazo. A ciência, por vezes, é um elevador sócio-econômico para pessoas menos privilegiadas e com menos oportunidades (ou nenhuma!). Pensando bem, isso é um benefício de curto prazo e duradouro. Além disso, lembro aos leitores de, que por vezes, podem achar que o financiamento da pesquisa científica na escala do sistema brasileiro é algo de “baixo retorno de investimento”, porém, ainda hoje, estamos (os cientistas) tentando provar teorias de Albert Einstein, por exemplo.