Desde seus primórdios, a humanidade tem uma relação próxima com questões espirituais. Pinturas rupestres de mais dez mil anos atrás já sugeriram isso. Sempre houve uma busca da humanidade por algo mais profundo, que transcendesse o corpo e apontasse para questionamentos milenares: o que acontece depois da morte? Como surgiu o universo? De onde viemos e para onde vamos?
Com a revolução científica, as questões espirituais foram colocadas num lugar oposto ao da ciência. Durante muito tempo, chegou-se a acreditar que as religiões uma hora iriam desaparecer. Mas isso não aconteceu. A conexão com a espiritualidade vem, inclusive, crescendo nos últimos anos. Basta ver a quantidade de livros sobre o assunto na lista de mais vendidos das livrarias.
Na academia, pesquisas que buscam associar espiritualidade e ciência também estão ganhando mais espaço. Um bom exemplo de como esses assuntos estão sendo tradado no ambiente acadêmico é o Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
O Nupes é um grupo multidisciplinar composto por alunos, professores e pesquisadores de diversas áreas: medicina, psicologia, neurociências, enfermagem, fisioterapia, filosofia, história, economia, jornalismo etc. Trata-se do principal grupo de pesquisa em espiritualidade e saúde no Brasil, sendo, também, referência internacional também.
Para entendermos um pouco mais sobre a atuação do Nupes e sobre a relação entre espiritualidade e ciência, conversamos com o Dr. Alexander Moreira de Almeida, Coordenador do NUPES e Professor Associado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFJF. Confira:
Qual é a importância de estudar a relação entre ciência e espiritualidade ou saúde e religião, que é o foco do Nupes?
No final do século XIX existia, entre os principais pensadores da época, uma previsão que a religiosidade iria declinar. No século XX, havia uma visão negativa da religiosidade, que, até então, era tida como falta de cultura, de instrução. O fato é que as religiões estão fortes até hoje. Uma pesquisa recente mostrou que 84% da população mundial tem uma filiação religiosa. No Brasil, uma em cada três pessoas frequentam um grupo religioso pelo menos uma vez por semana. Entre os adolescentes é a mesma coisa. E mesmo diante desses números, muito pouco se sabe sobre a relação da religião com a saúde. Nos últimos 20 anos, o número de pesquisas sobre o assunto aumentou bastante, mas ainda sim era tudo muito pouco difundido. Então, nosso objetivo principal é entender como a religião impacta na saúde. Ou seja, é tentar estudar, do ponto de vista acadêmico e multidisciplinar, a espiritualidade e a religiosidade e relação com saúde.
O que as principais pesquisas desenvolvidas pelo Nupes revelou sobre essa relação?
Nós somos um grupo interdisciplinar, temos pesquisadores de várias áreas, como filosofia, história, estatística, enfermagem, etc. Várias áreas se reúnem para estudar esse fenômeno que é, também, multifacetado. Dentro do núcleo, há três linhas de pesquisas: “História e Filosofia das Pesquisas sobre Espiritualidade”; “Epidemiologia da Religiosidade e Saúde”; e “Experiências Religiosas e Espirituais”.
Recentemente, foi feito um estudo com pacientes com doenças renais crônicas e em situação de hemodiálise. Neste pesquisa, foi medida o nível de felicidade e religiosidade deles. Nós percebemos que as variáveis clínicas não impactaram na felicidade desses pacientes (por exemplo, não importava se eles tinham anemia ou outra condição). Uma variável que impactou a felicidade desses pacientes, foi o nível de envolvimento religioso. Dessa forma, vimos o quanto a religiosidade influencia na felicidade.
Você acha que, mesmo com o crescimento do número de pesquisas sobre espiritualidade, ainda há uma certa resistência da comunidade acadêmica em relação ao assunto?
Eu acho que existe em alguma proporção. Quando você tem pesquisas de qualidade sobre o assunto e que foram feitas de forma ética, a adesão é muito grande. Existem órgãos importantes que pesquisam a relação entre saúde e espiritualidade, como a Sociedade Brasileira de Cardiologia. No mundo, universidades como Harvard, Cambridge, Oxford têm grupo de pesquisa sobre ciência e religião. Há alguns anos, havia sim muita desconfiança, mas isso está mudando.
E por que essa resistência acontece?
Essa desconfiança está relacionada a dois fatores: os mitos históricos que colocam a espiritualidade e a ciência em polos distantes, em que uma coisa nega a outra; e o desconhecimento das evidências. Por outro lado, vejo que dentro da divulgação científica ainda há essa resistência, como se a espiritualidade e religião ainda fossem tido como opostas da ciência e fossem considerada uma pseudociência.
A espiritualidade pode ser um elo de ligação, então, entre a sociedade e ciência?
Sim, não só um elo de união, mas de respeito e interesse por algo que sempre esteve presente na humanidade. Entretanto, na mídia tradicional, muitas vezes, o que vemos são os dois extremos. De um lado é a razão, antidogmática, que defende a ciência. Do outro, a religião, que vai negar a teoria da evolução, por exemplo. Mas é preciso encontrar um caminho que está no meio desses dois extremos e discutir esses assuntos de um modo equilibrado. Mas isso não dá audiência para a mídia, então é mais fácil colocar alguém com uma fala mais sensacionalista do que um ponto de vista equilibrado.
Foi, inclusive, pensando nessa necessidade de discutir o assunto de forma mais responsável que criamos, há cinco anos, nosso canal no YouTube. Toda semana, publicamos um vídeo novo com algum pesquisador abordando um tema diferente. Nosso objetivo com isso é levar para a população que essa ideia de que a ciência existe para negar a religião (ou vice-versa) está errada do ponto de vista histórico.