“Ela começou a entrar em trabalho de parto de madrugada e, como não havia transporte, ela e o marido tiveram que ir a pé até a sede, onde havia uma pequena infraestrutura de serviços, em uma caminhada de cerca de 5 horas debaixo de chuva e com as dores do parto”.
Essa é apenas uma das histórias ouvidas pela pesquisadora Juliana Vasconcelos de Souza Barros durante a construção do trabalho “Estratégias reprodutivas e evolução da fronteira agrícola: um estudo qualitativo para Machadinho d’Oeste, Rondônia”, tese defendida em 2017 e vencedora do Prêmio Capes de Tese 2018, na categoria Demografia. Ela realizou 60 entrevistas em profundidade com mulheres para entender mudanças sobre intenções reprodutivas e uso de métodos contraceptivos. Conheceu também relatos sobre a precariedade da infraestrutura, que torna a missão de ter filho muito difícil.
O comportamento feminino em relação à maternidade varia conforme as mudanças nos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Há influências das condições socioeconômicas individuais que impactam as decisões sobre número de filhos e a forma como as mulheres previnem a gravidez.
Não seria possível mapear essas dinâmicas sociais sem estudos específicos, como o trabalho de Juliana Vasconcelos. A cientista comparou duas diferentes gerações de mulheres ao longo do processo de abertura, desenvolvimento e consolidação da fronteira agrícola de Machadinho d’Oeste, no Norte do Brasil.
Existem teorias que analisam a relação entre uso da terra e fecundidade, de modo que a decisão de ter ou não (mais) filhos dependeria do tipo de uso da terra (cultivo anuais ou perenes, pecuária), da posse e tamanho da propriedade e das pressões demográficas e econômicas.
No entanto, a pesquisa de Juliana Vasconcelos mostra que não há relação direta entre uso da terra e número de filhos, pelo menos no grupo estudado. A tese apontou outros fatores determinantes para o comportamento reprodutivo, que parecem não corroborar totalmente as proposições de uma única teoria.
Comportamento reprodutivo e contraceptivo
O comportamento reprodutivo é a forma como as mulheres têm filhos. É a decisão delas (consciente ou não) sobre o número ideal de crianças. Ademais, é a maneira de implementarem suas preferências e intenções sobre o tamanho da família que terão.
De acordo com Juliana Vasconcelos, o comportamento está ligado ao uso de métodos contraceptivos para alcançar as preferências reprodutivas. Tem a ver com o fato de usarem ou não algum método para ter o número de filhos desejado, se elas conhecem a diversidade de métodos disponíveis e se podem escolher o que julgam ser o melhor. “Assim, comportamento reprodutivo e contraceptivo estão diretamente relacionados”, afirma.
A pesquisadora iniciou a tese com a hipótese de que distintas condições socioeconômicas que os diferentes estágios de evolução da fronteira oferecem fazem com que a decisão da mulher sobre o número de filhos. Também acreditava que a forma de evitá-los fosse diferente nas fases iniciais e nas mais avançadas da fronteira. Por isso, escolheu a cidade de Machadinho.
O Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da UFMG, realiza pesquisas no município desde a década de 1980. Juliana Vasconcelos faz parte da equipe que acompanha mudanças ambientais, no uso da terra, na carga de doenças, entre outras dimensões. “Assim, associei minha pesquisa a outros dados sobre a região, contextualizando melhor meus dados”, explica.
Para a pesquisadora, a experiência em campo em Machadinho d’Oeste foi bastante enriquecedora, tanto do ponto de vista profissional como pessoal.
“Conhecer a realidade do público pesquisado, a forma como vivem e interagem com o contexto que estão inseridos foi essencial para as análises que realizei, entendendo na prática o que li na referência teórica. Foi uma experiência de quase um mês vivendo em Machadinho, conversando com os moradores, conhecendo a infraestrutura da cidade, escutando histórias recentes e passadas e, principalmente, entrevistando as mulheres que participaram da minha pesquisa”.
Perfis: duas gerações de mulheres
Conforme a pesquisa, as mulheres dos estágios iniciais chegaram no momento de abertura da fronteira, ou seja, quando começaram a conceder as terras na Região Amazônica. Vieram de outros estados, sobretudo da Região Sul, e sempre moraram em sítios e áreas rurais.
“A experiência em áreas urbanas veio com a expulsão do campo, devido a modernização da produção agrícola, mas muitas famílias não se adaptaram e preferiram arriscar a ida para a Machadinho, mesmo sem saber ao certo o que encontrariam”, detalha Juliana Vasconcelos.
O perfil é de mulheres com baixa escolaridade, que casaram e foram mães muito novas e começaram a utilizar métodos contraceptivos tardiamente. Grande parte teve mais filhos que desejavam por falta de conhecimento e acesso a métodos, optando muitas vezes pela laqueadura como forma de evitar ter ainda mais filhos.
Já as mulheres dos estágios mais avançados nasceram ou chegaram ainda crianças à fronteira. “Muitas não trabalham em atividades agrícolas. São mais escolarizadas, se casam e têm filhos jovens. Tem um menor número de crianças, mais conhecimento e acesso a métodos contraceptivos. Também realizam a laqueadura como forma de não engravidar, implementando esse método no momento em que atingem o número desejado de filhos, ao contrário do outro perfil de mulheres estudado”, compara a pesquisadora.
O rumo das histórias
Segundo Juliana Vasconcelos, as entrevistas realizadas parecem não corroborar totalmente as proposições de uma única teoria sobre relação entre uso da terra e fecundidade. As mulheres dos dois grupos entrevistados não declararam explicitamente ter tido filhos para ajudar na terra, nem acreditam que a geração de suas mães e avós tenham planejado sua fecundidade com essa intenção. .
“Assim, a relação entre produção e reprodução parece ser, para o contexto e para o grupo estudado, espúria, de modo que a disponibilidade de instituições e serviços, principalmente de saúde sexual e reprodutiva, o uso de contraceptivos, os valores pessoais e as condições econômicas estão intermediando essa relação”, conclui.
Para alcançar essas considerações, a pesquisadora presenciou a força de cada relato, principalmente sobre precariedade da infraestrutura para ter filhos. As mulheres que chegaram na fase inicial da fronteira, ajudaram a desmatar, vencer a floresta e plantar para sobrevivência. “A maioria das famílias não tinham condições financeiras para tal. Além disso, a malária era recorrente, houve casos de pessoas tiveram a doença mais de 50 vezes, muitos relatos de morte decorrente dela também”, conta Juliana Vasconcelos.
As mulheres não conseguiam realizar o pré-natal de maneira adequada e momento do parto era difícil, por conta da ausência de hospitais/médicos, energia elétrica e até de estradas e transporte.
Três perguntas para a pesquisadora
Juliana Vasconcelos é bacharel, mestre e doutora pela UFMG. Tem uma trajetória de pesquisa é marcada pelos estudos na área de saúde sexual e reprodutiva feminina, nupcialidade e fecundidade – como acesso a serviços de saúde da mulher, planejamento da fecundidade e intenções reprodutivas. Os estudos dela transitam pelas diversas temáticas que área possui e se apoiando em análises micro e macro e de nível regional, nacional e internacional.
MFC: O que te motivou a estudar o tema?
Juliana Vasconcelos: o interesse que marca minha trajetória acadêmica de estudar temáticas relacionadas à saúde sexual e reprodutiva feminina. Entender como as mulheres decidem (de forma racional ou não) sobre número de filhos e se elas conseguem implementar essa preferência.
MFC: O que é ser cientista na área de Demografia?
Juliana Vasconcelos: o demógrafo estuda as mudanças nos componentes da dinâmica populacional, a saber, mortalidade, fecundidade e migração. Essas são as variáveis responsáveis pelo crescimento da população e determinam se essa mudança ocorre em maior ou menor intensidade/velocidade.
MFC: Quais contribuições sua tese deixa para essa área da ciência?
Juliana Vasconcelos: os resultados encontrados são um relevante subsídio para a implementação tanto de políticas de desenvolvimento regional como de saúde sexual e reprodutiva, igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável para a fronteira. Em um cenário mundial em que as mulheres têm tido cada vez menos filhos, estudar regiões onde a fecundidade demorou mais a cair ou ainda se mantém relativamente alta, é importante entender o contexto, as motivações e os fatores associados a ela.