Traumas geram sofrimento e crescimento pessoal para bombeiros
Não é muito difícil imaginar que a natureza do trabalho dos bombeiros gera estresse e, muitas vezes, traumas a esses militares. Eles lidam com pessoas gravemente feridas, mortas, em situação de dor e desespero. Por isso, a ciência já concluiu que todos esses elementos são fatores risco para a saúde mental deles. Além disso, enfrentam uma organização de trabalho com relações e pressões muito complexas, o que também os coloca em teste.
No entanto, você já parou para pensar o quanto o contato com essas cenas chocantes podem causar mudanças significativas na vida desses militares? Podem fazê-los repensar valores, mudar a forma de encerar o mundo e a percepção de si mesmos? Este é um dos temas de pesquisa do capitão Eduardo Lima, psicólogo do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais e pesquisador no Núcleo de Estudos Saúde e Trabalho (NEST) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele trabalha com uma equipe dentro da corporação de da universidade.
O capitão estuda há mais de 10 anos formas de adoecimento na corporação, saúde mental desses profissionais e, mais recentemente, o crescimento pós-traumático no setor de emergências. As pesquisas apontam que, por um lado a vivência no trabalho pode adoecer os militares – causando perda de sono e ansiedade. Por outro, os fazem mudar de vida, passando a valorizar ou dar atenção a coisas que antes não eram muito importantes, o que pode ser caracterizado como crescimento pessoal. À medida que o capitão Eduardo Lima foi estudando o tema, passou a observar o fenômeno na corporação.
“O crescimento pós-traumático é consequência da vivência de situações traumáticas de morte e risco de morte. Na literatura, os estudos cresceram na década de 1990 mostrando que esses eventos servem não só como fator de risco para o estresse pós-traumático, mas também como elemento para predispor as pessoas ao rumo que elas dão na própria vida. A mudança mais positiva foi convencionada como crescimento pós-traumático, cujo desfecho é uma alteração de filosofia de vida. Há relatos de que após ver situações de risco de morte, passa-se a valorizar a convivência com amigos e família, ou a dar valor ao que considera mais essencial e menos supérfluo. Existem também mudanças de natureza religiosa, algumas pessoas aprofundam em crenças ou dão mais importância à religião”, explica o pesquisador.
Sofrimento e crescimento
Por mais paradoxal que pareça, o estresse e o crescimento pós-traumático não são mutuamente excludentes, conforme explica o capitão Eduardo Lima. “Uma pessoa pode viver um trauma, ter sintomas de adoecimento e crescimento. Ela pode ter pesadelos, ansiedade, palpitação, sudorese, ficar sobressaltada e assustada. Ao mesmo tempo pode começar a repensar tudo, se aproximar de pessoas que tinha deixado de lado, traçar metas de vida mais significativas. A doença pode mudar os rumos no sentido de crescimento”.
Ainda de acordo com o pesquisador, o que há de mais comum entre o estresse e o crescimento pós-traumático é o efeito na visão que a pessoa tem de si e do mundo. “Quando presencia dor em um evento traumático, se depara com algo que não queria ver, não cogitava. Por isso, se força a revistar uma série de coisas. O trauma gera sofrimento e crescimento”, afirma.
Saúde mental ao longo do tempo
Um dos projetos de pesquisa realizados pelo capitão Eduardo Lima e equipe é o “Crescimento Pós-Traumático em bombeiros: coping e saúde no setor de emergências”, com fomento da FAPEMIG. Nesse caso, são usados métodos epidemiológicos com questionários de saúde aplicados a uma amostra da população de bombeiros em Minas Gerais.
Além dos inquéritos, os pesquisadores usam dados de medidas objetivas da própria instituição como, por exemplo, número de afastamentos por licença que podem indicar adoecimento. “As medidas quantificáveis nos ajudam a investigar a relação entre exposição a situações traumáticas e o desfecho disso para o profissional. São avaliados elementos do trabalho que podem influenciar a saúde, tanto no caso do estresse quanto no crescimento”, afirma o capitão Eduardo Lima.
A pesquisa tem uma metodologia longitudinal, cuja coleta e mensuração de dados se dá ao longo do tempo. Quer dizer que um mesmo militar poderá responder ao questionário mais de uma vez deixando seu autorrelato para os pesquisadores. Esse método é necessário para avaliar a exposição do bombeiro em momentos diferentes da vida profissional e entender as relações de causalidade.
“O momento A é na primeira semana de trabalho, quando entram na instituição e ainda não atenderam a nenhuma ocorrência. Eles ficam recolhidos para treinamento antes de ter contato com o dia a dia de bombeiros. Depois ,fazemos nova avaliação de dois em dois anos. São pesquisas baseadas no critério de tempo de serviço e na frequência que vivenciam situações no trabalho”, detalha o pesquisador.
“A gente vai caracterizando o perfil de exposição como, por exemplo, nível de participação em desastres naturais de dois em dois anos. Ao final de oito anos, é possível saber se a pessoa exposta a essas situações tem saúde mental pior, melhor ou não difere daquelas que não passaram por tantos eventos”.
Desfecho
Os resultados da pesquisa ainda não estão prontos. O questionário aplicado tem 20 perguntas que incluem assuntos relacionados ao crescimento pós-traumático. Os militares respondem sobre forma de ver o mundo, mudanças espirituais, relações interpessoais. Os pesquisadores agora estão analisando os dados específicos dos bombeiros em Minas.
“O que se sabe é que o crescimento é muito frequente em profissionais de emergência: Samu, médicos de Pronto Atendimento, bombeiros e policiais. O desfecho é comum, segundo a literatura da área. Quanto mais trauma, mas crescimento desenvolvem”, conclui o pesquisador. No próximo mês, haverá nova etapa de colega de dados.
Pesquisa dentro e fora da universidade
O capitão Eduardo Lima destaca a importância do desenvolvimento de pesquisas fora do ambiente das universidades, uma prática que ele considera “incipiente e incomum”. “Tive trajetória dentro da universidade e sei das diferenças em pesquisar lá e numa instituição como os Bombeiros”. Ele é psicólogo formado pela UFMG e desenvolveu estudos sobre problemas neurológicos na graduação e no mestrado.
Depois disso, tomou um rumo profissional fora da universidade atuando como psicólogo por um tempo. Logo após, ingressou no Corpo de Bombeiros, quando decidiu voltar a desenvolver pesquisas, mas desta vez, com temáticas ligadas à experiência como psicólogo da instituição. Por isso, no doutorado estudou estresse pós-traumático nos bombeiros, mais especificamente, como os militares lidavam com situação de trauma e morte e também o quanto administravam os fatores de risco ligados a organização do trabalho dentro da corporação.
“A forma como o trabalho é organizado é um fator de risco. É menos evidente, mas com consequências noviças. As pressões, relações com as pessoas, autonomia e formas de reconhecimento”, explica.