Documento de Mariana recebe título de patrimônio da humanidade
Um manuscrito histórico de Minas Gerais acaba de ser reconhecido como patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O Livro de inventários da Catedral de Mariana (1749-1904) foi aprovado no Programa Memória do Mundo da Unesco/Memory of the World (MoW) que certifica documentos, arquivos e bibliotecas de grande valor internacional, regional e nacional.
Com o objetivo estimular a conservação e a ampla difusão de acervos, o MoW facilita a preservação desses documentos e o acesso, contribuindo para despertar a consciência coletiva para o patrimônio documental da humanidade. O livro de Mariana, que recebeu o título, é objeto de pesquisa de mestrado de Marcus Vinicius das Dores, no Programa de Pós-Graduação Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação da profa. Aléxia Teles Duchowny. Segundo ele, o inventário é um vasto registro de bens da catedral, listados pelo bispo da época como parte do processo administrativo.
“Esse manuscrito registra vestes litúrgicas – túnicas e casulas -, prataria, objetos de ouro e madeira, imagens de santos, livros que estavam na igreja, entre outros. Traz a descrição desses bens, a quantidade e avaliação monetária da época”, detalha.
Ainda conforme o pesquisador, o manuscrito tem informações de objetos que vieram de Lisboa junto com o bispo nomeado de Mariana, que foi o primeiro bispado mineiro. “Em algumas pesquisas de outros documentos da época, foi possível recuperar cartas do bispo endereçadas ao rei de Portugal solicitando o envio de bens registrados nos inventários”, explica.
Alguns dos objetos do século XVIII, registrados no livro, estão disponíveis atualmente no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra. Outros são usados até hoje em celebrações oficiais em Mariana, como por exemplo, a Semana Santa. “São peças que têm grande valor litúrgico e relação com a religiosidade popular, avalia Marcus das Dores.
De acordo com o pesquisador, o livro conta a história de objetos, pois no decorrer do tempo percebe-se que alguns vão desaparecendo ou o acervo cresce. “No primeiro inventário, havia três cruzes de prata e no quinto, a igreja tinha cinco. Existia a imagens de um santo específico que sumiu. Ali há um registro de três séculos, por isso a variação no inventariado dos objetos”, afirma.
O encanto de lidar com documentos históricos é mais do que uma ciência, mexe com afeto e memória. “O material tem uma descrição tão pormenorizada que, mesmo sem ter o bem em mãos, a gente consegue visualizar o objeto. Quando fui ao Museu Arquidiocesano me surpreendi porque reconheci algumas peças que estavam descritas no manuscrito”.
Estudos e legado
A pesquisa de Marcus das Dores, que é bolsista Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é voltada para o estudo da língua no livro de inventários. “É um registro único. Consigo acompanhar a mudança linguística dentro do documento porque tem um recorte temporal grande” diz.
[quote align=’left’]“A língua é também patrimônio imaterial e minha pesquisa atesta isso. Sem trabalhar com o manuscrito eu já tinha hipótese de que era um importante documento histórico, social e linguístico. Minhas hipóteses foram confirmadas e a Unesco vem para reafirmar” Marcus Vinicius das Dores, pesquisador do Programa de Pós-Graduação Estudos Linguísticos da UFMG.[/quote]
O foco do pesquisador é na linguagem eclesiástica. Marcus das Dores faz um levantamento terminológico e um estudo lexical de expressões particulares, por isso escolheu trabalhar com o livro de inventários. Segundo ele, é importante uma investigação que descreva as singularidades dessa linguagem. “Assim como a área do direito e da medicina, a esfera eclesiástica têm peculiaridades”, afirma.
Conforme o pesquisador, a ideia é que o resultado da pesquisa possa retornar à comunidade. Ele diz que as pessoas têm curiosidade em saber o que ele está estudando e agora terão a oportunidade de entender. “Mariana completou três anos do crime na Barragem de Fundão, da Samarco, por isso visibilidade e reconhecimento para a cidade são bem vindos”.
Certificação
Para se tornar patrimônio da humanidade o livro de inventários foi submetido ao Edital MoWBrasil 2018. Recebeu a nomeação junto a mais nove documentos brasileiros. Outro registro de Mariana, Inventários post-mortem do Cartório do Primeiro Ofício de Mariana (1713- 1920), também foi certificado, o que significa muito para a cidade, bem como para a história de Minas Gerais e do Brasil.
Todo ano, a Unesco seleciona documentos para a titulação. “Resolvi candidatar o documento que é objeto da minha pesquisa de mestrado, mas, inicialmente, achei que não seria selecionado. Existiam vários registros do Museu Nacional, que pegou fogo, concorrendo. Documentos que estavam guardados lá e foram perdidos. Achei que a Unesco daria prioridade para selecioná-los”, conta.
Junto à candidatura é enviado um projeto com a descrição do documento, a materialidade, grau de conservação, tipo de costura do livro, entre outros detalhes. Também vai uma carta em que historiadores e outros pesquisadores atestam a importância daquele bem. No caso do livro de inventários apoiaram a candidatura Maria Cândida Trindade Costa de Seabra, diretora do Centro de Documentação do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais; Filomena Gonçalves, professora com agregação em História da Língua Portuguesa e Historiografia Linguística na Universidade de Évora (Portugal); Aléxia Teles Duchowny, da área de Estudos Diacrônicos da UFMG; Júlia Amélia Mitraud Vieira, presidente da Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP); Ana Cristina de Souza Maia, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio (COMPAT); e Cristiano Vilas Boas, vereador de Mariana.
O livro precisou atender a critérios que avaliam a relação dele com a sociedade, história e práticas religiosas. “Para ser reconhecido, um bem precisa atender a, no mínimo, dois aspectos. O Livro de inventários da Catedral de Mariana respeitou a seis critérios”, pontua Marcus das Dores. A aprovação aconteceu em outubro e no dia 12 de dezembro, no Rio de Janeiro, o documento receberá o selo e certificado de patrimônio mundial da Unesco.
“Vai ser ótimo trazer este certificado, guardar no arquivo e divulgar este título. A catedral está sendo restaurada e, talvez, façamos uma exposição que mostra para a comunidade o documento”, conclui Marcus das Dores.
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