Em busca da sonoridade perdida
Ouvir música é, obviamente, um ato complexo, da relação entre sons e silêncios à natureza (estética, política, cultural, metafísica etc.) do gesto, em si, de se entregar à fruição de sonoridades – no caso, elaboradas com fins artísticos. A própria definição de “musicalidade”, aliás, revela-se mote primordial à compreensão do “todo sonoro”. Nos ensaios de A fugitiva, o crítico e pesquisador Lorenzo Mammì, professor de História da Filosofia Medieval na Universidade de São Paulo (USP), não se furta a problematizações de tal envergadura.
Ao contrário: na obra, o autor busca ampliar o debate em torno da intricada miríade de significados inerente aos também labirínticos atos de escuta e criação musical. Nas duas partes do livro – dedicadas, respectivamente, ao cancioneiro brasileiro e à seara erudita –, Mammì aborda questões referentes a temáticas como estrutura, linguagem e interpretação musicais. Além disso, mesmo ao longo de análises mais técnicas em torno de “compostos” harmônicos e melódicos, dedica-se a reflexões históricas, sociais, culturais, filosóficas e literárias.
Nos 22 ensaios do livro, afora discussões de natureza geral (era do disco; música radical; Marcel Proust e a famosa frase acerca da sonata ficcional “Vinteuil” etc.), o professor investiga, com erudição e sabor, o caleidoscópico universo estético de artistas como Dorival Caymmi, João Gilberto, Tom Jobim, Chico Buarque, Luiz Tatit, Villa-Lobos, Debussy, Glenn Gould ou Rossini.
Trecho
“O centro da bossa nova continua sendo, como para o samba, o canto. Sua intuição é lírica e, mesmo nos produtos mais sofisticados, exige que se acredite numa espécie de espontaneidade. Já o jazz, cuja intuição fundamental é de natureza técnica, privilegia o acorde. A harmonia de Tom Jobim é próxima à do jazz na morfologia, mas não na função. Para um jazzista, compor significa encontrar uma estrutura harmônica capaz de infinitas variações melódicas. Para Jobim, é encontrar uma melodia que não pode ser variada, já que ela é o centro estrutural da composição, mas pode ser colorida por infinitas nuances harmônicas. É por isso que as improvisações jazzísticas sobre temas de bossa nova produzem, em geral, uma incômoda sensação de inutilidade.”
Ficha técnica
Livro: A fugitiva – Ensaios sobre música
Autor: Lorenzo Mammì
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 366
Ano: 2017
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