“A gente, às vezes, dá muito valor para pesquisas de fora. Muitos não sabem que dentro do Instituto René Rachou a gente tem pesquisadores de excelência conhecidos no mundo todo. Eles fizeram coisas imensuráveis e estão aqui do nosso lado. As pessoas não sabem o que esses cientistas representam para o país e para as doenças, nem o quanto é importante tê-los aqui”. (Raissa Nogueira de Brito, bióloga e cientista da Fiocruz Minas)
Os espaços da ciência no Brasil são muitos e não ficam apenas dentro das universidades. Quem passa pela Avenida Augusto de Lima, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, talvez nem saiba que ali fica um centro de pesquisas com cientistas renomados mundialmente.
Desde 1955, o Instituto René Rachou (IRR), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), se dedica a pesquisas sobre doenças, vetores, parasitos, meio ambiente e biotecnologia fazendo descobertas que contribuem com a saúde púbica. Dentro do instituto, existe o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (PPGCS) que, na última avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), foi qualificado com 7, a nota máxima. Por isso, é um dos programas que apresentaremos na série de reportagens sobre pesquisas de excelência desenvolvidas em Minas.
Os mestrados e doutorados do IRR começaram na década de 1970, numa iniciativa liderada pelo professor Zigman Brener, por meio de um convênio firmado com cientistas da área de Parasitologia da UFMG. As pesquisas em Ciência da Saúde tiveram origem em 1983 e o PPGCS surgiu em 2001, vinculado à comissão de avaliação multidisciplinar da Capes, devido à diversidade de áreas e de competências.
Atualmente, o programa concentra pesquisas em três grandes áreas: biologia celular e molecular, genética e bioinformática, doenças infecto-parasitárias e crônicas não transmissíveis, e transmissores de patógenos. Isso quer dizer que os cientistas estão preocupados com em fazer pesquisa básica sobre cada doença e, também, com desenvolvimento tecnológico e inovação em saúde.
Impacto social
A coordenadora Luzia Helena Carvalho destaca o impacto social do programa como uma das melhores características. “Recentemente, estudos feitos aqui sobre o fracionamento da vacina da febre amarela mostraram que a dose reduzida tinha mesmo efeito da dose prolongada. Desenvolvemos também um estudo para soltar na natureza mosquitos Aedes aegypti infectados com uma bactéria para matar os vírus da dengue, chikungunya, zika”.
Ela destaca também o desenvolvimento de diagnósticos que chegam ao mercado com o objetivo de reduzir morbidade e mortalidade. “Somos uma instituição de saúde pública para fortalecer o SUS e disponibilizar para populações carentes”.
Os docentes e pesquisadores do PPGCS publicam em revistas de alto impacto na área e ajudam na nucleação de outros programas de pós-graduação. Promovem desde a internacionalização à formação de estudantes na iniciação científica. No entanto, para coordenadora, os projetos pautados no ponto de vista social são os mais relevantes. Ela destaca trabalhos sobre leishmaniose, doença de chagas, malária e verminoses.
O lado humano
Raissa Nogueira de Brito é doutoranda do PPGCS e estuda a Doença de Chagas. Ela procura entender porque algumas espécies de barbeiro têm a capacidade de colonizar casas, enquanto outras invadem as residências, mas não as colonizam. De acordo com a pesquisadora, ainda há grande dificuldade de entendimento sobre o fazer ciência no Brasil.
“Escuto, muitas vezes de pessoas dentro do ambiente acadêmico, perguntas como: ‘Nossa, mas doença de Chagas ainda existe?’ Minha resposta é: Sim. E não podemos esquecer das pessoas afetadas por esta doença que são negligenciadas por nós e pelo governo. No ambiente fora da academia, sempre ouvimos perguntas relacionadas à veracidade de informações veiculadas sobre vacinas, drogas recentemente descobertas, epidemias e, também, sobre como é a pesquisa dentro de um laboratório. O desconhecimento de como a pesquisa é feita no Brasil é muito grande e, tristemente, escutamos perguntas como: ‘Você só estuda?’, ‘Para que serve o que você faz?’, ‘Por que você não procura um emprego?’, ‘Você acha que o governo tem mesmo que investir em pesquisa se não tem dinheiro?’. (Raissa Nogueira de Brito doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde)
De acordo com cientistas, mesmo que Fiocruz Minas trabalhe com pesquisas que dão claros retornos para a sociedade, o reconhecimento do trabalho ainda é restrito.
“A gente articula muito a pesquisa com as necessidades da sociedade, desenvolvendo produtos, tratamentos, vacinas e diagnósticos. É uma instituição que tem compromisso com o Sistema Único de Saúde. No estudo de doenças como dengue e febra amarela, o nome da Fiocruz sempre aparece”, afirma a doutoranda Denise Alvarenga. Ela é cientista há 10 anos no centro de pesquisa e está envolvida com investigações sobre a malária como zoonose na Mata Atlântica. A cientista analisa a parte molecular do parasito que infecta primatas não humanos (bugio-ruivo, macaco-prego, saguim, mico-leão dourado).
O que motiva essas pesquisadoras a manter o trabalho é, justamente, a possibilidade de contribuir com a saúde pública. “A gente pensa em milhões de pessoas que estão morrendo no Brasil e no mundo, o que nos dá incentivo para continuar”, afirma Ana Carolina Silvino. Ela é mestranda e desenvolve estudos no Laboratório de Biologia Molecular e Imunologia da Malária. Ana Carolina analisa fatores do hospedeiro (mosquito) e do parasito que influenciam nas recorrências da infecção. Para isso, investiga marcadores genéticos tentando compreender possíveis causas na falha do tratamento da doença.
Para a doutoranda Camila Barbosa, toda pesquisa gera conhecimento, mesmo que não resulte em um produto. Ela trabalha no Laboratório de Imunopatologia e estuda desenvolvimento de vacina contra malária. Recentemente, ficou 15 dias em Rondônia, coletando sangue de pacientes infectados e trazendo para pesquisas. “Não fui eu que escolhi a malária, foi ela malária que me escolheu. Pode não parecer, mas é uma doença negligenciada e pouco estudada aqui no Brasil. Dentro do que posso contribuir, estudo sobre ela”.
Camila Barbosa relata a importância de vivência em áreas endêmicas, experiências que humanizam a visão do cientista. “No mestrado, trabalhei com a malária, mas nunca tinha visto uma pessoa com a doença. Agora, já fui cinco vezes a essas áreas endêmicas. Lá é possível ter contato com o paciente e ver as pessoas passando mal. Não é apenas um tudo de ensaio com uma amostra de sangue que chega para mim”.
Manter a excelência
De acordo com Raissa Nogueira, fazer ciência de qualidade é seguir os passos básicos indispensáveis para o método científico: ter uma pergunta relevante, formular hipóteses e estabelecer métodos muito bem pensados para “atacar o problema”. Além disso, prezar pela ética e a transparência no momento de realizar e apresentar a pesquisa, fazendo com que sejam replicáveis e livres de fraude.
Há grande preocupação, entre as estudantes e coordenação, com a manutenção da pesquisa de excelência no PPGCS, principalmente no que diz respeito à continuidade de investimentos e bolsas. A coordenadora Luzia Helena Carvalho acredita na ciência feita com fomentos contínuos para ter amostras e estatísticas robustas, substâncias importadas para trabalhos em bancada, além de equipamentos de ponta. Ela exemplifica:
“Se retiram o dinheiro para pesquisa de uma doença, retiram a continuidade. Recentemente, deslocaram o investimento dos estudos da malária para a dengue. Agora, estamos com surto de malária em Diamantina, no Sul da Bahia e até em Manaus. Retirou-se o dinheiro do controle da doença e ela veio a todo vapor. Vigilância epidemiologia é para o resto da vida”, detalha.
Para a Raíssa Nogueira, ser um programa reconhecido internacionalmente aumenta o desafio de continuar fazendo um bom trabalho. “A cobrança é maior e o compromisso assumido envolve estudantes e corpo docente. A internacionalização tem trazido muitos pesquisadores de fora para seminários e para promover intercâmbios. Aumentar a visibilidade é muito bom, mas também cresce a responsabilidade”.
O que sempre fará a diferença, segundo Raíssa Nogueira, é o amor pela ciência. “Me pergunto sempre: por que eu continuo? É porque estou gerando conhecimento e trabalhando para ajudar o SUS. Isso me conforta mesmo quando vejo que recebo pouco ou a bolsa está atrasada”. Outra colega corrobora:
“Fazer ciência no Brasil é matar um leão por dia. É clara a falta de condições básicas para fazer pesquisa, mas a gente dá um jeito. Às vezes precisamos de um reagente, que nos EUA, chegaria ao laboratório em um dia. Aqui demoram seis meses. O que a gente faz é por amor a ciência. Nosso lema da Fiocruz é sua saúde é nossa meta. A gente acorda todo dia com este pensamento de que está fazendo um bem para sociedade” (Denise Alvarenga doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde)
Visando a conquista de direitos como cientistas, estudantes articularam para formar a Associação de Pós-Graduandos do Instituto René Rachou. Eles participam de debates nacionais como, por exemplo, a possibilidade de previdência social para pesquisadores, além do reajuste de bolsas anual, aos moldes do salário mínimo. “Se a gente quer brigar por direitos, temos que nos organizar”, afirma Raíssa Nogueira, que é presidente da associação.