Povos que habitavam pontos distantes do globo há centenas de anos desenvolveram relações muito diferentes com a tatuagem, desde a Antiguidade.
Compreender esses processos culturais que associam tattoos a aspectos positivos ou a conotações negativas foi um dos objetivos de um levantamento realizado pelo pesquisador Martin Dinter, do King’s College London, em parceria com a pesquisadora Astrid Khoo.
No estudo, eles identificaram que a arte de tatuar o corpo na Antiguidade podia estar relacionada à punição ou à decoração, passando também por fins mágicos de culto e crenças médicas na fertilidade. A pesquisa foi realizada a partir de consulta a documentos, como relatos médicos da Grécia Antiga.
Tatuagem para punir
Os gregos especializaram-se na remoção de tatuagens porque ter a pele marcada era, para eles, um símbolo de escravidão e da prática de delitos.
Quando, eventualmente, um escravo se tornava um homem livre, precisava remover a tatuagem para ser respeitado na sociedade grega.
Tais técnicas de remoção eram dolorosas e consistiam em criar ferimentos por cima da tatuagem, deixá-los infeccionar e remover a pele morta e necrosada, o que deixava grandes cicatrizes.
“A palavra grega para “tatuagem” é a mesma que usamos para “estigma“. Se um homem grego fosse tatuado, estaria estigmatizado. Na Grécia, pessoas consideradas más sempre eram tatuadas. A tatuagem era um instrumento de marcação de escravos e criminosos. Quem praticava roubos, por exemplo, ganhavam a palavra “ladrão” na testa, e carregava aquela marca para o resto da vida”, explica Martin Dinter.
Exemplos de tatuagem na Antiguidade
Os gregos tinham uma relação tão negativa com a tatuagem que quando encontravam relatos, imagens ou mesmo pessoas tatuadas vindas de outras culturas, acabavam por subverter os significados em algo ruim.
“Como não entendiam a possibilidade de se tatuar pela beleza, interpretavam esses traços como símbolos de punição, relacionando-os a crimes e à origem do mal”.
Múmias egípcias como as que pertencem ao British Museum passaram por tomografias que permitiram a identificação de tatuagens simples relacionadas à fertilidade feminina, como na imagem ao lado.
Pequenos pontos eram tatuados na região do ventre que, ao crescer com a gravidez, expandia também os desenhos.
“Podemos dizer que para os egípcios a tatuagem tinha uma função mágica e médica, uma vez que se acredita favorecer a fertilidade com o desenho desses pontos na barriga”, conta o professor.
Mesmo os Maias, na América Latina, usavam a tatuagem para fins de decoração do corpo, bem como os indígenas brasileiros.
Já os cristãos antigos recebiam tatuagens em formato de cruz como punição na época em que eram perseguidos. Depois, ressignificaram a imagem e passaram a usar a tatuagem em um processo de identificação coletiva em torno da causa cristã. “Há muitos relatos de monges cristãos tatuados no passado, o que não é mais tão comum hoje em dia”, destaca Dinter.
A tatuagem no século XXI
Para quem pensa que o estigma das tatuagens ficou no passado, o professor conta que mesmo hoje elas ainda são encaradas em muitas culturas como marcas sociais e culturais negativas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, existem programas que oferecem a ex-prisioneiros a chance de remover suas tatuagens, para que não sofram preconceitos na ressocialização.
Também há casos de pessoas que, ao serem levadas a júri, foram orientadas a cobrir suas tatuagens, para que os desenhos não interferissem negativamente na opinião dos jurados.
No Japão, as tatuagens são associadas ao pertencimento à máfia e há espaços, como os banhos públicos, em que pessoas tatuadas são proibidas de entrar.
“Já no Brasil, observo que as tatuagens são muito comuns e não se restringem a um movimento de contracultura, pelo contrário”, comenta Dinter.
Segundo ele, na Inglaterra, a opção por tatuar o corpo tem um recorte de classe:
“A parcela mais escolarizada da sociedade inglesa é menos propensa a fazer tatuagens. É pouco comum encontrar professores de universidades tatuados. A Família Real Inglesa não pode se tatuar. Mas pessoas como David Beckham, um jogador de futebol que é famoso, rico e muito tatuado, não sofrem preconceitos porque se encontram em outra esfera social”, observa.
Censura da pele
Dinter observa que, na Europa, trabalhadores imigrantes passaram por situações de preconceito por apresentarem tatuagens nos braços, chegando inclusive a sofrer censura por parte de empresas que exigiam que os desenhos fossem tampados no local de trabalho.
“Acho que esse quadro teve uma melhora nos últimos 10 anos, mas é um tópico interessante para pensar como, ainda na atualidade, a tatuagem é um tema que desencadeia posicionamentos controversos”.
Sobre os pesquisadores
Martin T. Dinter (PhD pela Universidade de Cambridge) é professor titular de Literatura e Linguagem Latina no King’s College London. Autor de Anatomizing Civil War – Studies in Lucan’s Epic Technique (Michigan, 2012), e co-editor de A Companion to the Neronian Age (Malden, 2013).
Dinter publicou artigos sobre épicos de Virgílio, Horácio, Lucan, Sêneca e Flaviano, bem como sobre a Comédia Romana, e está preparando um estudo sobre Cato, o Velho, na literatura. É co-organizador de uma série de conferências em três partes sobre Memória Cultural Romana com eventos em Londres (2016), Paris (2017) e São Paulo (Brasil) em 2018.
Astrid Khoo estuda clássicos no King’s College London. Seus interesses de pesquisa incluem jurisprudência e educação medievais, bem como paleografia e literatura latina. Atualmente, está trabalhando em “‘Suspend Your Lectures”: University Statutes and Legality in the Thirteenth Century”, para a coleção editada Law | Book | Culture in the Early e High Medieval West (Brill, no prelo) e realiza projeto de pesquisa junto a Martin Dinter sobre roupas de baixo na Antiguidade, e sobre o neo-latim brasileiro.
O pesquisador veio à UFMG para participar das Jornadas de Retórica e Argumentação, pr
O grupo é coordenado pelas professoras Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (Presidente da Associação Latino-Americana de Retórica), do PPGFIL/FAFICH, e Helcira Maria Rodrigues de Lima (Presidente da Sociedade Brasileira de Retórica), do POSLIN/FALE.