Os desafios próprios de uma pesquisa científica podem ser acentuados quando a proposta envolve o trabalho de campo. Investigar algo diretamente no ambiente proposto exige planejamento e o aparato de equipamentos e ferramentas que possibilitem a atividade.
Em alguns casos, fatores como tempo, clima e a distância, tornam-se grandezas fundamentais para que o trabalho obtenha êxito. Lidar com os imprevistos também é imprescindível nas tarefas diárias. Quanto mais hostil for o ambiente, maiores os riscos.
Navegar próximo a áreas congeladas, por exemplo, não parece ser das tarefas mais simples para um pesquisador comum. Mas foi exatamente nesse ambiente que surgiu o projeto de pesquisa Mycoantar, desenvolvido na Antártica por uma equipe de cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A possibilidade de lidar com situações extremas faz parte da rotina dos cientistas engajados nesse projeto, mesclando ciência e aventura.
A iniciativa, que é ligada à área de Microbiologia Polar faz parte do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), que possui status de Ciência de estado e é reconhecido como programa científico internacional. Como membro do Tratado Antártico (Programa de cooperação internacional que propõe a utilização da Antártica para fins científicos) O Brasil faz parte de um seleto grupo de 29 nações com poder de voto em decisões que envolvam o futuro do continente. O desenvolvimento de pesquisas de caráter científico no local são requisitos mínimos para os países envolvidos.
Coordenada pelo professor Luiz Henrique Rosa, o Mycoantar tem por objetivo catalogar espécies de fungos que possam ser encontrados no continente e posteriormente testados em diferentes estudos relacionados à produção de medicamentos e à agricultura, entre outros.
Para tornar o trabalho possível, o primeiro passo foi buscar a autorização de órgãos oficiais, aponta o professor Rosa. “Com o projeto aprovado, solicitamos uma licença de coleta e acesso à Antártica junto ao Ministério do Meio Ambiente e à Marinha do Brasil. A proposta sempre é avaliada para medir os possíveis impactos que pode levar ao ambiente. Aprovada, recebemos uma autorização internacional” conclui.
A Marinha do Brasil ainda exerce outro papel fundamental no processo que é o de trasporte dos pesquisadores até as estações de trabalho onde as atividades serão implementadas.
Em cada excursão, a equipe é composta por integrantes no número de 4 a 7 indivíduos e as atividades levam em média dois meses, escolhidos no período do verão antártico, que vai de outubro a março do ano subsequente.
O início das atividades
Fruto de um convite da professora Vivian Pellizari, da Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa começou em 2006 dentro do PROANTAR. Segundo Luiz Henrique, as primeiras coletas teriam ocorrido nos anos de 2006/2007 nas ilhas Rei George, onde se localiza a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF).
“Durante os dois meses que permanecemos na região foram coletadas diferentes amostras de fungos presentes no solo, nas plantas, na água de lagos, entre outras, para posterior isolamento e registro”, afirma o professor.
Os desafios da rotina de atividades no gelo
As variações climáticas do lugar exercem grande influência nas atividades. A instabilidade faz com que o trabalho seja adequado às condições do dia. “Só saímos das acomodações (Navios polares ou estações) diante de condições de vento e neve favoráveis. As vezes permanecemos abrigados por uma semana esperando o momento ideal. Quando ele chega trabalhamos por até 16 horas seguidas para aproveitar o clima bom”, afirma.
A pesquisa integrada
Embora a atividade desenvolvida pela equipe liderada pelo professor mineiro seja ligada à Micologia, com destaque especial para os fungos, outros campos de estudo cooperam com o trabalho, estabelecendo a interdisciplinaridade na Ciência Antártica. “Trabalhamos em conjunto com muitas áreas, como a Geologia (solos, rochas e sedimentos marinhos e de lagos), a Glaciologia (gelo e neve) e a botânica (plantas e macroalgas) investigando a presença de fungos em cada uma delas. Também há uma interação constante com a área de farmácia e de química, que estudam substâncias antibióticas produzidas pelos fungos encontrados”.
Os desdobramentos
As atividades que completam 12 anos em 2018 tornaram o Departamento de Microbiologia da UFMG o portador da maior coleção de fungos antárticos do mundo, com cerca de 10 mil fungos depositados na coleção de culturas.
Entre os desdobramentos das coletas feitas até aqui, grande parte dos benefícios notados está ligada ao setor de medicamentos, aponta o coordenador. “Alguns fungos antárticos já se mostraram promissores na produção de substâncias antibióticas contra os agentes causadores de doenças como a leishimaniose, doença de Chagas, Dengue, febre amarela e zika”.
As pesquisas também apontam para o registro de fungos capazes de produzir substâncias antifúngicas e herbicidas para uso contra patógenos da agricultura, o que pode agregar grande valor no futuro, pois podem gerar produtos auxiliares ao agronegócio do Brasil.
Além disso, novas possibilidades sempre são observadas. “Como temos muitos fungos capazes de crescer em baixa temperatura, estamos avaliando espécies capazes de produzir substâncias anticongelantes para futuro uso na indústria de alimentos e na aviação“, avalia.
Veja mais detalhes das atividades no vídeo do projeto: