Por Tatiana Pires Nepomuceno
No período de redemocratização do Brasil, o movimento negro e as lideranças das comunidades remanescentes de quilombos intensificaram a busca por direitos de cidadania. Envolvidos no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, asseguraram o direito de propriedade a tais populações, por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que afirmava: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir a eles os títulos respectivos”
Ao longo de quase duas décadas, as conquistas de tais comunidades expandiram-se, e, em novembro de 2003, por meio do Decreto presidencial nº 4.887, foi regulamentado o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas.
Cinco anos mais tarde, o Ministério da Saúde instituiu a portaria nº 90, de 17 de janeiro de 2008, que atualizava o quantitativo populacional de residentes em assentamentos da reforma agrária e de remanescentes de quilombos, por município, para cálculo do teto de “Equipes Saúde da Família – modalidade I”, e de “Equipes de Saúde Bucal da estratégia Saúde da Família”.
De lá para cá, muita coisa mudou. Nesse contexto de alterações e progressos sociais, insere-se o município de São Francisco, localizado ao Norte do Minas Gerais. A região conta com mais de 50 mil habitantes e apresenta extensa área rural, onde se localizam diversas comunidades quilombolas, objeto de estudo do professor Antônio Prates Caldeira, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Apoiada pela FAPEMIG, a pesquisa buscou traçar um panorama da situação real de tais grupos, com relação à questão da atenção primária e da saúde materno-infantil.
A pesquisa avaliou 411 mulheres, entre 18 e 49 anos, e 234 crianças, com até cinco anos, em amostragem representativa de 33 comunidades quilombolas na região. Os dados coletados indicaram a necessidade de implantação de políticas públicas futuras, inclusive, na área educacional, além de estratégias de promoção da saúde e melhoria das condições sanitárias.
“A maioria das famílias ainda vive em condições precárias. Quase metade das mulheres entrevistadas tinha escolaridade inferior a quatro anos. Além disso, o acesso a água tratada, esgotamento sanitário e coleta de lixo também são bastante limitados”, destaca Antônio Prates.
Foi possível apurar, ainda, que a maioria das mulheres (52,1%) tiveram a primeira gravidez na adolescência e 35% disseram ter passado por quatro ou mais gestações. Para o diretor da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig), Marco Túlio Vaintraub, o fato de a mulher ter um bebê ainda muito nova põe a mãe em risco, pois ela pode desenvolver, por exemplo, pré-eclâmpsia ou vir a falecer. Já para a criança, o complicador é o nascimento prematuro ou o desenvolvimento de sequelas.
Dados preocupantes
Também segundo dados da pesquisa, a realização de exames preventivos para o câncer de colo uterino, nas comunidades quilombolas, mostrou-se irregular. No total, 15,1% das mulheres nunca haviam feito o teste. Em relação ao ciclo gravídico-puerperal, 23,5% delas revelaram menos de seis consultas de pré-natal; 37,2% relataram início do pré-natal após o primeiro trimestre de gestação; e 44,4% nem sequer fizeram consulta puerperal.
“Sem o exame, o risco de morte é enorme. Ele aumenta em 50% em locais com condições precárias, como aquelas relatadas nas comunidades quilombolas”, pontua Marco Túlio.
Se tal questão é delicada para os adultos, quando há o risco de morte infantil, é preciso um cuidado ainda maior. O estudo mostrou que 15% das crianças nasceram com baixo peso, e 9,4% tinham problemas crônicos de saúde. Segundo a nutricionista Bruna Amorim Zandoná, o pouco peso é inquietante, quando se pensa em mortalidade infantil. “A instabilidade hermodinâmica e suas propriedades fisiológicas aumentam a vulnerabilidade dos recém-nascidos, podendo levar ao óbito”, explica.
O estudo mostrou que 15% das crianças nasceram com baixo peso, e 9,4% tinham problemas crônicos de saúde.
A investigação também mostrou que 40,6% dos bebês não faziam uso regular de vitamina A, que é extremamente importante nos estágios iniciais de vida, em especial com relação ao sistema imunológico das crianças. “De acordo com o Ministério da Saúde, aproximadamente 23% dos casos de mortalidade infantil por diarreia são atribuídos à deficiência de vitamina A”, destaca.
Equipes de saúde
Apesar de os resultados apresentados não serem favoráveis com relação à assistência às comunidades negras, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES/MG) informa que os governos federal e estadual têm incentivado a presença de equipes da Estratégia de Saúde da Família junto a grupos de alta vulnerabilidade social, o que inclui os atendimentos às comunidades quilombolas.
Além disso, há programas e apoio financeiro aos grupos de Estratégia de Saúde da Família e de Saúde Bucal, que atendem populações residentes em assentamentos dos movimentos agrários ou de remanescentes de quilombos.
Segundo critérios definidos pela Resolução SES/MG nº 5.246, de 2016, os 69 municípios mineiros (aqui, incluso o município de São Francisco), elencados na Portaria nº 90/2008, são beneficiados, o que configura aporte financeiro total para 52 equipes de Estratégias de Saúde da Família e 44 de Saúde Bucal.
“Tal resolução também apresenta, dentre os objetivos estratégicos, identificar e tratar precocemente lesões sugestivas e/ou precursoras de câncer de colo de útero. Tem-se como indicador a razão de exames citopatológicos do colo do útero em mulheres de 25 a 64 anos”, explica Camila Dornelas, coordenadora de políticas de promoção da equidade em saúde da Secretaria.
Entretanto, de acordo com o professor Antônio Prates, coordenador da pesquisa, as ações ainda são incipientes, pois o modelo assistencial continua pontual, e, por vezes, apenas curativista, sem foco na família e na comunidade local.
“Particularmente, penso que comunidades quilombolas devam contar com equipes de saúde que desenvolvam modelo mais acessível, mais acolhedor e mais envolvido, culturalmente, com as populações. O histórico de abandono desses grupos é uma grande justificativa”, pontua. Marco Túlio vai além: “A boa medicina é preventiva, em especial, na assistência básica à saúde”, conclui.
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