Cada vez mais famílias convivem com um bichinho de estimação. De acordo com a última pesquisa divulgada pelo IBGE, em 2015, o Brasil possui mais de 132 milhões de animais de estimação e figura o 4º lugar no ranking mundial de países em número de pets. A pesquisa, realizada com dados de 2013, aponta também que mais da metade desses animais são cachorros e que 44% das casas brasileiras têm pelo menos um cachorrinho.
Ter um cachorro significa ter que lidar com um momento difícil: o da despedida. A expectativa de vida de um cão varia entre 10 e 12 anos, de acordo com a raça e o porte, mas pode ser antecipada por vários fatores como a contaminação por doenças como a leishmaniose visceral canina. Para evitar a transmissão da doença para os humanos nesses casos, a estratégia do Ministério da Saúde ainda é a eutanásia dos animais doentes. Dessa forma, muitas famílias já tiveram que passar pelo difícil momento de sacrificar um cachorro infectado.
Uma esperança para os bichinhos
Mas essa angústia pode estar com os dias contados graças à pesquisa em desenvolvimento no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG pretende criar uma vacina para a doença, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto e do Centro de Pesquisas René Rachou (Fiocruz/MG). Coordenada por Rodolfo Cordeiro Giunchetti, médico veterinário e professor do Departamento de Morfologia da UFMG, a pesquisa já tem patente depositada.
O estudo, pioneiro no mundo, utiliza proteína do próprio inseto flebótomo que transmite o protozoário causador da doença, para interferir no seu ciclo biológico. O objetivo é causar desequilíbrio no inseto, induzindo à diminuição do número de ovos e bloqueando a infecção em seu organismo, de modo a evitar que ele leve o parasito Leishmania chagasi a outros hospedeiros. A intenção é que, ao se alimentar do sangue de um cão que esteja imunizado por essa vacina, o flebótomo ingira anticorpos contra suas próprias proteínas. “Assim, mesmo doente, o cão com leishmaniose visceral não teria importância na transmissão desse protozoário e poderia ser submetido ao tratamento, sem causar impacto para a saúde pública”, prevê o pesquisador Rodolfo Cordeiro Giunchetti.
O estudo
Por ser uma abordagem inédita, a pesquisa precisou passar pela chamada prova de conceito – testes que confirmem a hipótese de que as proteínas do inseto podem bloquear a infecção pelo protozoário causador da leishmaniose visceral. A primeira etapa foi realizada em camundongos e a segunda, que está em finalização, foi testada em cães.
Os experimentos em andamento revelaram indícios de que a infecção não se estabelece no trato digestório do inseto que se alimenta com o sangue de um animal imunizado. “Isso mimetiza o estado do animal doente que foi vacinado. Ele produz anticorpos que atacam o funcionamento dos mecanismos biológicos do inseto e inibem etapas de seu desenvolvimento e a infecção pelo protozoário no próprio inseto vetor”, explica o professor. Segundo ele, após a ingestão do sangue, o parasito não se desenvolveria no inseto, sendo eliminado. “Assim, esse inseto não se torna infectante. Já temos evidências de que isso vai funcionar”, enfatiza.
A ideia é utilizar a vacina, inicialmente, em animais que já estejam infectados. Mas Giunchetti também prevê sua aplicação associada com vacinas que venham a ser lançadas comercialmente e que não induzam proteção estéril, isto é, que não sejam capazes de impedir completamente a infecção de cães. “Há consenso entre os pesquisadores de que a ciência talvez precise de décadas para avançar e ser capaz de desenvolver uma vacina totalmente eficaz contra protozoários – no caso da Leishmania chagasi, que induza resposta imune no cão, para que ele não seja infectado”, pondera.
O tratamento, hoje
Atualmente, não há tratamento reconhecido no país para cães infectados por Leishmania chagasi. “O Ministério da Saúde já manifestou que, caso venha a surgir tratamento para a doença em animais, não pode ser com os fármacos de uso humano. Com o uso desses fármacos, o cão, ainda que aparente melhora, fica assintomático, e mantém o parasito com uma grande chance de transmissão, ao ser picado pelo flebótomo”, explica o pesquisador. Segundo ele, a droga usada para tratar as leishmanioses no ser humano são os antimoniais pentavalentes – no Brasil é comercializada com o nome de Glucantime®. No entanto, o cão excreta mais de 90% desse fármaco na primeira hora de administração, o que impede que ele atue de forma eficiente no organismo do animal.
De acordo com o pesquisador, diferentemente da forma como se manifesta nos cães, no ser humano o parasito normalmente não fica na pele, mas em órgãos viscerais, como medula óssea, baço e fígado. “A espécie que causa a leishmaniose visceral aqui no Brasil – a Leishmania chagasi ou Leishmania infantum, consideradas a mesma espécie – tem essa característica e é transmitida no chamado ciclo zoonótico. O homem é um simples hospedeiro acidental, que acaba se infectando. Desse modo, quem mantém o ciclo no ambiente urbano é o cão, e, exatamente por isso, uma das ações de controle é a eutanásia”, explica o professor.