Sempre fomos ou estamos mais violentos? Entre notícias de jornais e boletins de ocorrência, os números e relatos sobre crimes praticados no Brasil são bastante expressivos. De acordo com dados da primeira edição da Pesquisa Nacional de Vitimização, divulgados em 2013 pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, 32,6% dos brasileiros, que vivem em cidades com mais de 15 mil habitantes, disseram ter sofrido, ao longo da vida, algum dos tipos de crimes ou ofensas contemplados no estudo, como furto e roubo de objetos ou bens, sequestro, fraudes, agressões, ofensas sexuais e discriminação.
Em que pese a reflexão em torno do aumento da criminalidade e/ou da visibilidade que tais ações ganham na mídia, gerando-se uma espécie de círculo vicioso, há que se destacar o fato de que a discussão em torno do fenômeno tem ganhado espaço na sociedade brasileira, da população à mídia, das ruas à universidade.
Desde a década de 1980, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) produz conhecimento científico acerca de criminalidade e violência, bem como sobre organizações policiais, com ênfase em Minas Gerais. Em 1996, como fruto do conhecimento adquirido e das demandas sociais, foi criado o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), que busca produzir conhecimento acadêmico sobre os problemas da violência e da criminalidade, bem como auxiliar na formulação, implementação e avaliação de políticas de segurança pública no Estado e no Brasil. Dentre os trabalhos produzidos, destacamos a pesquisa “Segregação Urbana, Cidadania e Crime”, coordenado pela professora Corinne Davis Rodrigues, do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG e que contou com o apoio da FAPEMIG. O estudo buscou analisar em que medida a segregação social produz distinções na prática da cidadania, além de investigar o modo como tais diferenças relacionam-se às variações de crimes no espaço urbano.
A percepção do delito como problema público central na vida cotidiana dos brasileiros emerge de um conjunto de argumentações teóricas acerca do comportamento criminoso, bem como sobre sua relação com os contextos econômicos e sociais. Segundo Corinne, várias teorias buscam explicar a propensão à criminalidade, das que focam nos indivíduos àquelas que buscam explicações nas condições de vida que os cercam. De acordo com a pesquisadora, a perspectiva adotada em seus estudos é a da ecologia humana, desenvolvida pela Escola de Chicago, entre os anos 1930 e 1940.
A partir desse enfoque, a cidade, tendo por base o processo de urbanização, é vista como um laboratório para o estudo das relações sociais vinculadas ao crime, sendo abordada tanto do ponto de vista físico quanto social.
“O pressuposto básico é o de que o comportamento humano é modelado pelas condições sociais, presentes nos meios físico e social, que conformariam o poder de escolha dos indivíduos.”, afirma.
Crimes têm motivações diferentes, de acordo com os seus tipos: delitos contra a propriedade ou contra pessoas têm origens distintas. Numa perspectiva teórica que busca discutir oportunidade e crime, tem-se, como ponto de partida, o fato de que, em pessoas dispostas a cometer crimes, tais atos são cometidos diante de condições favoráveis, como alvo atrativo e falta de vigilância. No ver de Corinne Rodrigues, a questão não está em mudar o criminoso, mas em alterar o espaço físico e social, para que não haja “a oportunidade”. No ensejo das políticas públicas, a questão central diz respeito à compreensão do fato de que determinadas ações aumentam ou diminuem a criminalidade.
Crime X IDH
Baseado em argumentos teóricos que relacionam as diferenças inter e intraurbanas em criminalidade, com o acesso diferencial aos direitos civis e sociais em determinados ambientes, o projeto analisou as variações nas taxas de crime em municípios mineiros e em distintas áreas no interior da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Verificou-se, ainda, a relação entre essas variações e indicadores sociais que medem o nível de cidadania dos lugares – a saber: saúde, educação e renda. Cabe salientar que, na pesquisa, o nível de cidadania foi construído com base no índice de desenvolvimento humano (IDH).
Para tanto, o projeto lançou mão de metodologia mista, ao empregar análises estatísticas e dados qualitativos. Segundo Corinne Rodrigues, num primeiro momento, as análises estatísticas buscaram determinar a relação entre os indicadores de cidadania e as variações das taxas de crime. Em etapa posterior, usaram-se métodos qualitativos, como entrevistas e grupos focais, para apreender os significados das práticas e níveis de cidadania – que, por sua vez, foi avaliada com base no acesso, ou não, a direitos civis e sociais.
Cabe destacar que, ao proceder às análises, a equipe de pesquisadores do projeto se deparou com elementos que contradiziam teorias, como a da relação entre IDH e criminalidade.
“Em tese, onde o índice é alto, a criminalidade tende a ser menor, e vice-versa. Em Belo Horizonte, porém, vimos que alguns bairros apresentavam essa relação invertida. Como explicar tal situação?”, questiona.
Uma das possíveis respostas pode estar nas teorias que analisam a chamada “coesão social”. Em regiões onde se verifica maior interação entre vizinhos, por exemplo, pode haver redes de proteção mais amplas. Entretanto, esse dado isolado não dá conta da complexidade do fenômeno abordado, pois, no Brasil, existem regiões/bairros onde a coesão social é alta, assim como as taxas de crime. Nesse caso, Corinne aponta a falta de articulação do bairro com a administração pública como uma das possíveis explicações para essa ocorrência.
Próximos passos
Até o momento, os pesquisadores analisaram dados referentes a todos os municípios de Minas Gerais, visando encontrar possíveis relações entre uma série de indicadores de investimento público e as taxas de criminalidade. Ao trabalhar com duas fontes de dados – o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Índice de Responsabilidade Social Mineiro (IMRS), ambos produzidos pela Fundação João Pinheiro –, a pesquisadora destaca resultados importantes.
Em primeiro lugar, percebeu-se que as taxas de criminalidade não se relacionam à privação “absoluta”, mas “relativa”. Isso significa dizer que o crime diz mais respeito à desigualdade do que à pobreza. Observou-se, ainda, que a falta de acesso aos serviços básicos, garantidores dos direitos civis e sociais, altera, de fato, as taxas de crimes violentos verificados no Estado.
Corine Rodrigues acrescenta que indicadores como percepção de desordem, infraestrutura e condição de habitação foram importantes para explicar as diferenças das taxas de crimes em distintos bairros de Belo Horizonte.
“Os dados qualitativos, obtidos em entrevistas e grupos focais, reforçaram a importância de presença de serviços públicos, e, especialmente, de redes interações sociais nas percepções de segurança nos bairros.”, explica.
Na visão da pesquisadora, para que possam ser desenvolvidos programas de prevenção, faz-se necessário compreender a natureza do fenômeno. O entendimento acerca da distribuição da criminalidade urbana e em torno do que acontece nos espaços físico e social que acaba por contribuir – ou não – para a criminalidade é algo que precisa estar presente em estudos futuros.
A observação de tais fenômenos, sob visada micro, pode iluminar ainda mais a questão. “Se, numa amostragem censitária, temos uma relação entre bairros, precisamos, então, partir para uma análise rua a rua, de modo a tentar compreender a distribuição do crime segundo características dos espaços físico e social.”, conclui, ao lembrar, por fim, que o intercâmbio com outros pesquisadores da América Latina– que possuem processo de urbanização similar ao brasileiro – pode representar bons resultados e ajudar na compreensão do fenômeno da criminalidade.
Texto originalmente publicado na edição nº 59 da Minas Faz Ciência.
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