Antes que o conceito de “escola” chegasse a Minas Gerais, como era feita a transmissão do conhecimento entre a população? Em busca de respostas para essa e outras perguntas, a pesquisadora Thais Nivia de Lima e Fonseca vem, desde 2004, desenvolvendo pesquisas sobre o tema Educação e instrução na América portuguesa, Capitania de Minas Gerais, que investigam o ensino no Brasil Colônia. Os projetos contam com financiamento da Fapemig e confirmaram a importância de práticas educativas não-escolares na formação da sociedade mineira colonial.
Com a pesquisa, foi possível identificar que, ao contrário do que se imaginava, havia uma população letrada na capitania de Minas Gerais que não se limitava apenas aos membros mais privilegiados da sociedade. “Embora, estatisticamente, seja possível afirmar que a maioria da população não soubesse ler e escrever, não se pode mais dizer que havia uma analfabetismo geral, ou que só as elites tinham acesso à educação”, pontua. Naquela época, a educação escolar não era um valor equivalente ao que temos hoje, nem era uma atribuição do Estado, mas havia uma preocupação por parte das famílias em promover o aprendizado, que se dava fora de uma lógica escolar.
“A população que queria educar seus filhos contratava mestres particulares, uma vertente importante desse processo de ensino-aprendizagem. Não havia uma formação de professores clássica, mas quem soubesse ler e escrever acabava passando esse conhecimento a outros”, detalha a pesquisadora. Segundo ela, há fortes indícios de que boa parte desses mestres eram mulatos, que tinham habilidades de leitura e escrita, e eram contratados por famílias que também queriam que seus filhos pudessem atuar como mestres. “Até famílias menos ricas, com pequenas posses, podiam pagar um mestre por alguns meses”.
As escolas em Minas Gerais
“Escolas existiam no Brasil desde o século XVI. Mas, em Minas Gerais, não. Essas escolas eram vinculadas a ordens religiosas, que chegaram ao país logo nos primeiros anos após o descobrimento para catequizar os índios e a população não-católica. Os jesuítas e os franciscanos tinha escolas em várias regiões do litoral do Brasil e em São Paulo, no interior. Mas a Coroa Portuguesa proibiu a instalação de ordens religiosas na capitania de Minas Gerais logo que o ouro foi descoberto”.
A primeira escola de Minas foi o Seminário de Mariana (hoje, o prédio é sede do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto), em 1750. Em 1759, a Coroa começa a promover a reforma que vai resultar nas “aulas-régias”, que eram aulas isoladas, públicas, financiadas pelo Estado, e com professores concursados. O estudo sobre esse modelo busca compreender a influência da Coroa Portuguesa e seus objetivos ao chamar para si a tarefa de criar escolas para a população que residia no Brasil.
A pesquisa também analisa o direcionamento ideológico das práticas educativas, profundamente vinculado à posição que Estado e Igreja ocupam na sociedade do Antigo Regime: “Como Portugal era uma monarquia ligada à Igreja pelo sistema do padroado, ou seja, a Igreja estava submetida ao Estado, o interesse era todo voltado à formação dos súditos cristãos”, explica Thais. Tais aspectos, entretanto, não se limitavam aos espaços escolares, mas aparecem também nas festividades religiosas, nas manifestações artísticas e em outras instâncias.
“A vivência dessas pessoas na comunidade estava totalmente marcada pela fidelidade à Coroa e à Igreja”, afirma Thais, que identifica uma permanência cultural desses valores e relações de poder em cidades com forte herança colonial, como Ouro Preto, Mariana, São João del Rey e Diamantina. Antes de chegar a essas conclusões, porém, a pesquisadora mergulhou nos arquivos do Brasil Colônia para identificar e caracterizar práticas de ensino-aprendizagem que não correspondiam, necessariamente, a um ensino formal.
Uma das motivações para conduzir tais estudos foi a observação da educação servindo como instrumento político no Brasil para formar a identidade nacional e contribuir na afirmação de valores na primeira metade do século XX. Tais aspectos foram identificados ainda durante a tese de doutorado em História Social (USP). Após ingressar na Faculdade de Educação da UFMG, a pesquisadora foi incentivada pelos colegas a investir na pesquisa sobre educação no período colonial, época menos estudada na historiografia da educação. “Existem estudos clássicos importantes, mas são antigos e carecem da qualidade metodológica que são próprias da historiografia atual”, pontua.
Os desafios da pesquisa em arquivo
Diante do desafio de explorar uma área com pouquíssimas publicações, Thais começou, há mais de 10 anos, a mapear o terreno de fontes em potencial para a pesquisa, partindo para a exploração dos arquivos. “Como havia poucas referências, a primeira tarefa foi definir a partir de que documentação começaríamos a pesquisa. O começo era muito intuitivo”. Na tradição historiográfica da história da educação no Brasil, os estudos mais abundantes tratam do período do Império e da República, períodos em que a documentação do Estado já aponta para os tipos de arquivos que contenham informações sobre a educação. “Isso se deve à existência de órgãos públicos responsáveis pela educação a partir do Império, mesmo antes da existência do Ministério da Educação, que é de 1930”, explica.
Como não havia um lugar específico onde pudesse encontrar dados sobre a educação, coube à pesquisadora aprofundar as reflexões em referências teóricas e concluir que a sociedade colonial passava por outros processos educativos, que não eram a “escola”, mas sim “práticas educativas”. O trabalho de campo foi extenso: “Comecei a busca por documentos sem preconceitos arquivísticos: a ideia era verificar qualquer indício existente na documentação, de natureza oficial ou não-oficial, que tivesse relação com qualquer modalidade de educação”. Por questões práticas, a busca foi concentrada na documentação existente, principalmente, no Arquivo Público Mineiro e na Casa Borba Gato, do Museu do Ouro de Sabará.
Entender como funcionava a estrutura político-administrativa do Império Português foi crucial para, em seguida, saber onde localizar registros das práticas educativas vigentes naquele período. Com auxílio de uma bolsista, Thais buscava por documentos que tivessem alguma ligação com a educação a partir de palavras-chave como “infância” e “livro”, cruzando referências com a reflexão bibliográfica. Após esse levantamento inicial, a pesquisadora montou um banco de dados público sobre ensino no Brasil Colônia em Minas Gerais. Clique aqui para acessar o site do grupo de pesquisa.
“Enfrentar a documentação não é fácil. O documento tem que ser entendido na estrutura administrativa em que foi concebido, fato que nem sempre é compreensível com o olhar de hoje. Há muitas superposições de funções entre os vários órgãos, além de inúmeras cópias de um mesmo documento, o que torna difícil entender sua origem. É preciso saber diferenciar uma cópia em livro de registro de um documento original”, detalha.
Outro desafio foi o fato de que a documentação, uma vez encontrada, é predominantemente manuscrita, o que levou a pesquisadora a contar com a contribuição de estudiosos de outras áreas, como História da Língua Portuguesa e Filologia. Essa natureza manuscrita exigiu um tratamento especial na leitura e interpretação dos textos, que Thais considera “paleográficos”. Além do conhecimento das técnicas de leitura, ela observa que o pesquisador acaba criando um hábito no entendimento do texto dos diferentes autores daqueles documentos, como os escrivães. “A gente vai quase acompanhando essa pessoa, que tem sua própria forma de compor a letra, de usar ou não abreviaturas. Muitas vezes trabalhamos por semanas com um volume de textos de um mesmo indivíduo e depois surge um novo escrivão, levando o pesquisador a se reacostumar com a escrita dessa nova pessoa”, conta.
Novos desafios
A grande renovação que a historiografia da educação passou, a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990, tem relação estreita com o fato de os historiadores terem voltado aos arquivos. Classicamente, a escrita da história no Brasil no século XIX tem foco nos arquivos, mas passa por um período de afastamento dos documentos, em troca de uma interpretação histórica a partir de grandes modelos teóricos. O mais importante do retorno aos documentos é o fato de eles colocarem em xeque muitas interpretações convencionais que foram feitas sem o recurso dos acervos”.
No estágio atual, a pesquisa reconhece que havia um grande mérito pessoal em ser professor no período colonial. Thais já identificou, por exemplo, documentos em que professores-régios pediam “mercês” à Coroa – ou seja, títulos de nobreza ou outros privilégios, por terem prestado serviço na educação da população – o que desmistifica a ideia do professor como uma figura sagrada.
A pesquisadora considera também que a investigação nos acervos é importante para desconstruir afirmações muito sedimentadas na área educacional, além de valorizar outras práticas realizadas fora do ambiente escolar. “Quando se olha o passado, só se pensa em uma História da Escola, como se educação e escola fossem sinônimos, mas é preciso compreender outras dimensões da nossa formação cultural”, conclui a pesquisadora.
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