Nos próximos anos, um importante desafio para o Brasil, no que concerne ao meio ambiente, é consolidar uma política pública de conservação e preservação das espécies, diante da constante ameaça de perda da biodiversidade. Tal ameaça tem como fator principal as ações humanas, em maior e menor escala, que, muitas vezes, interferem no equilíbrio natural dos ambientes.
Nesse contexto, tem crescido a proposição de ações que objetivam a conservação de espécies ameaçadas de extinção. Dentre elas, destacamos o Plano de Ação Nacional para a Conservação de Répteis e Anfíbios Ameaçados de Extinção na Serra do Espinhaço (PAN – Herpetofauna do Espinhaço). O plano visa estimular a realização de projetos de cunho científico, que busquem conhecer a distribuição e a história natural das espécies da cadeia do Espinhaço, tendo em vista subsidiar ações de conservação mais efetivas na região.
Um desses projetos, que conta com o apoio da Fapemig, é o “Diversidade de anfíbios da Serra da Piedade no Estado de Minas Gerais”. Coordenado pela pesquisadora Luciana Barreto Nascimento, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), o trabalho vem sendo realizado em diversas áreas na Serra do Espinhaço e o foco tem sido cobrir lacunas de conhecimento sobre a diversidade de fauna da região, em especial de anfíbios e répteis.
“Nesse projeto, tivemos a possibilidade de buscar dados não só sobre as espécies presentes na lista brasileira de espécies ameaçadas, mas também coletar dados de espécies sobre as quais temos pouco (ou nenhum) conhecimento. Isso é importante para que possamos estabelecer o status dessas espécies em termos de ameaça e necessidade de conservação.”
De acordo com a pesquisadora, a escolha pela Serra da Piedade deu-se por duas razões principais. Uma delas é o fato de ela apresentar ambientes típicos do Espinhaço em altitude, que são os campos rupestres, sendo uma região bastante representativa desse bioma. A outra razão refere-se ao alto grau de interferência antrópica que o local vem sofrendo, decorrente de atividades de mineração no entorno (Quadrilátero Ferrífero) e do turismo religioso.
Segundo Luciana, a proposição do estudo na Serra da Piedade partiu de dados obtidos em observações esporádicas, que sinalizaram a possibilidade de haver fauna endêmica do Espinhaço na região. Ela ainda destaca que, uma característica do trabalho nas áreas do Espinhaço é o pesquisador iniciar suas atividades de pesquisa num lugar, devido à existência de determinadas espécies, e, então, começarem a aparecer espécies novas. “Quando falo em espécies novas, são espécies que ainda não foram descritas cientificamente. Então, elas não são reconhecidas como “riqueza” e, portanto, sequer são mencionadas em ações de conservação e preservação”, explica.
No estudo em questão, entre as espécies descobertas, e que foram descritas cientificamente, tem-se a Fritziana sp. e a Scinax aff. perereca (ver fotos).
Sobre esse fato, a professora pontua que os investimentos em pesquisa e a conscientização da necessidade de estudos desse tipo fizeram aumentar a descoberta de espécies novas. “Se pegarmos os últimos anos, com o aumento de pesquisadores na área veremos que o número de artigos sobre espécies novas aumentou bastante”, conta.
Organização metodológica
De acordo com Luciana, no projeto, foi usada a metodologia de busca ativa, em que o pesquisador sai em busca dos animais. No caso, são determinados alguns locais (sítios de amostragem) propícios para a ocorrência dos bichos.
“Geralmente, os anfíbios estão associados a um corpo d’água: um rio, um riacho, uma lagoa, uma poça. No caso da Serra da Piedade, há uma situação muito interessante, que são as espécies que ocorrem dentro de bromélias. A água se acumula na planta e o animal fica ali dentro. É ali que ele canta, que ele se reproduz. É ali que os girinos vão viver, vão se alimentar. Na Serra da Piedade, essas bromélias estão lá em cima, nos campos rupestres, onde você não tem nenhum corpo d’água formado, a não ser as bromélias”, explica.
A coordenadora também ressalta os sítios de amostragem que foram estabelecidos em áreas muito impactadas – áreas artificiais, como poços artificiais em fazendas – assim como em áreas de riacho com mata ciliar. “Tudo isso para que o processo de busca ativa contemplasse diferentes ambientes possíveis de ocorrência dessas espécies”, conta.
Quando o sapo canta, nem sempre é porque tem frio.
Após observação e coleta de alguns indivíduos, os pesquisadores começam a trabalhar com as características morfológicas. E, segundo Luciana, um aspecto muito importante para a descrição das espécies de anfíbios é a análise das características do canto.
Sim, os sapos cantam! E cada canto tem características bastante específicas, que variam de espécie para espécie. O canto é utilizado pelos animais para se comunicarem com os indivíduos da mesma espécie, assim como com indivíduos de outras espécies. De acordo com a coordenadora, foram feitas tanto análises físicas do canto quanto análises mecânicas (para avaliar frequência, amplitude). Há ainda as análises de contexto, que buscavam compreender o significado de determinado tipo de canto. No projeto, a pesquisadora destaca o fato de já terem sido identificados alguns tipos de canto.
“Temos, por exemplo, o canto de anúncio, que é aquele que o macho canta para atrair sua parceira. Outro tipo é o territorial, que ele emite para afastar qualquer outro macho daquele espaço acústico em que ele se encontra. Isso para que nenhum macho interfira no processo de atração da fêmea. Existem situações em que alguns machos ficam caladinhos ao lado de um macho cantor e, quando a fêmea chega perto do macho cantor que ela escolheu, o outro macho caladinho a intercepta e ela não tem como fugir.”
A professora também destaca o canto agonístico, emitido quando o animal é predado, podendo, nesses casos, ser também emitido pela fêmea. Esse canto tem a função de avisar aos outros indivíduos que existe um predador ali por perto.
Conscientização para a preservação
Apesar das dificuldades, principalmente aquelas vinculadas ao acesso aos locais para a realização das pesquisas, o projeto se encontra em uma nova etapa, onde dados coletados na fase anterior estão sendo aprofundados.
“Nessa nova etapa, estamos trabalhando, por exemplo, com duas espécies dos campos rupestres, que são muito tímidas por se encontrarem numa área em que há muito vento e faz muito frio. Estamos num processo de monitoramento, com gravadores que ficam no campo, para avaliar, por exemplo, o canto e identificar os fatores intervenientes (humanos e não-humanos) nos processos e atividades dessas espécies.”
No que se refere à conservação, segundo Luciana, há uma tendência a se acreditar que, atualmente, existem muitos parques, muitas áreas de conservação e que nossa fauna e flora está protegida. No entanto, para a pesquisadora, o que se vê é que muitas dessas unidades de conservação foram feitas com base em pouca informação a respeito da distribuição das espécies. Sendo assim, torna-se fundamental conhecer e descrever as espécies para que se tenha um processo de conservação mais criterioso.
Além disso, para a pesquisadora, é fundamental investir em formação de pessoal e em recursos para a elaboração dos inventários, que são ferramentas essenciais para a proteção das espécies.