Para o professor Gabriel Cid de Garcia, a ciência, assim como a arte, é uma forma de pensamento. O coordenador do projeto Ciência em Foco – ciclo permanente de palestras promovidas pela Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – foi outro entrevistado para a matéria que explora as relações entre cinema e ciência, publicada na edição nº 45 da Minas Faz Ciência. A seguir, você confere a entrevista completa:
A aproximação entre cinema e ciência é bem antiga. Pensando em seus primórdios, pode-se dizer que a própria técnica cinematográfica tem um viés científico, não é mesmo? É possível fazer um breve panorama desse diálogo?
Certamente, um tema fascinante de se discutir são os limites e as tensões entre o cinema como técnica e o cinema como arte ou espetáculo. De que modo essa continuidade se insinua e que descontinuidades ela pressupõe? O aparato do cinematógrafo é uma invenção que sintetizou, de fato, diversas ideias que já traziam em si certo pensamento em torno do que era o cinema. Alguns pesquisadores até situam como célebre, bem antes dos cientistas, a passagem da República de Platão em que é desenvolvida a alegoria da caverna. De fato, se paramos para pensar, o cinema nada mais é que uma espécie de caverna onde se projetam sombras que se confundem com o mundo. Precisaríamos supor uma realidade para além da caverna? Gosto desta imagem, pois ela nos remete, de saída, para uma relação do cinema com o pensamento. Os princípios da ótica que possibilitaram a câmera obscura, aliados à química da impressão fotográfica, permitiram aos cientistas um meio de captar o movimento de modo objetivo. Como na técnica da cronofotografia, que impulsionava os estudos e experimentos de Marey e Muybridge em torno da decomposição e análise do movimento de animais. Ou no estudo das fotografias que registravam as crises histéricas, de Albert Lande e Charcot.
Embora vários cientistas tenham atuado ativamente, em suas áreas específicas, com pesquisas que colaboraram para a invenção do cinematógrafo, é interessante pensar que o cinema não é um mero produto de laboratório. Sua gênese se deve sobretudo à contribuição determinante de outras camadas da sociedade que se dedicaram às técnicas da ilusão do movimento, como os mágicos ilusionistas, artesãos e pessoas ligadas ao mundo do espetáculo. Um exemplo interessante deste uso é a apropriação do invento de homens de ciência como Kirchner e Huygens – a lanterna mágica – para os truques envolvendo a projeção de imagens, a fantasmagoria. Do mesmo modo, o cineasta francês Georges Méliès inventou diversos truques e efeitos especiais que apelavam para o imaginário, distanciando-se da objetividade almejada pela ciência.
O cinema pode ser considerado como o meio de comunicação que auxiliou (e que auxilia) a prática da divulgação científica? Ainda hoje é assim?
Precisamos situar e delimitar aqui duas estratégias que se aliam a dois tipos de filmes distintos: os filmes que se utilizam do potencial visual e narrativo do cinema com a finalidade específica da divulgação de certos conteúdos relacionados à ciência e à tecnologia; e os filmes mais diretamente ligados a um processo artístico e expressivo, seja ele narrativo, de ficção ou não. Os filmes que possuem uma finalidade educativa se ocupam em comunicar aspectos específicos de determinada realidade, e podem se utilizar, certamente, de elementos estéticos e expressivos do cinema para potencializar suas estratégias. Este tipo de cinema educativo sempre esteve atrelado às práticas de divulgação científica e tecnológica na Europa e também no Brasil, como na iniciativa governamental do antigo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), criado na década de 30, com a maioria de seus filmes dirigidos por Humberto Mauro. Por outro lado, filmes educativos também faziam parte da programação de cineclubes europeus desde as primeiras décadas do século XX, mas dividiam seu espaço com filmes de ficção ou filmes de arte, o que nos aproxima de uma preocupação com a imagem, que não se restringe aos seus elementos pedagógicos ou ideológicos.
Em se tratando deste outro tipo de filme, o viés educativo com relação à perspectiva de divulgação científica se dilui ao se mesclar aos diversos aspectos culturais, sociais e políticos que povoam as atividades cineclubistas e as discussões que animam a cultura cinematográfica. Discutir temas a partir dos filmes não é discutir um tema do qual o filme poderia ser a ilustração ou exemplo, mas pensar com o filme questões que ele provoca, de modo a ampliar nossa experiência do real. A estratégia passa a ser a de refletir com o filme, e a partir dele, aquilo que ele dá a pensar, podendo se relacionar, de formas variadas, com questões de diferentes áreas do conhecimento. Existem hoje muitos cineclubes, especialmente ligados a universidades, que carregam essa proposta.
Lembro-me de uma reportagem de capa da revista Superinteressante que, em função da exibição, à época, do filme Alexandre – e pensando, obviamente, nos jovens leitores da publicação –, tratava o personagem histórico pelo singelo apelido de “Xandão”. Como o senhor enxerga tais “traduções” do universo da ciência? Estratégias como essa aproximam ou distanciam as pessoas da vocação científica?
Dependendo da faixa etária a que se endereça, este tipo de estratégia pode ser interessante, atuando como um recurso heurístico irreverente. Penso que o importante seria perceber os limites que a separam de uma simplificação demasiado redutora, na qual um elemento pedagógico se sobrepõe às próprias questões das quais se quer tratar. É muito comum querer aproximar determinadas questões ao cotidiano das pessoas, mas é interessante fazer o exercício de pensar de que cotidiano estamos falando: há sempre o risco de pressupor certa realidade geral ou práticas que seriam gerais ou correntes na sociedade, e isto empobrece a própria atividade, no sentido de restringir justamente as possibilidades que emergem da saída do lugar-comum. Estas estratégias que supostamente pretendem atingir um grande público às vezes são carregadas de preconceitos pautados pela ideia de separação entre certa camada que detém o saber e outra ignorante, ou melhor, de que existe um conteúdo que precisa ser transmitido e se aproxima de uma verdade da qual estive, até o momento, afastado, mas que preciso ter acesso. Uma forma de assumir que não há um saber no pedestal seria enfatizar os aspectos filosóficos, culturais e sociais da ciência, ativados por abordagens críticas. Provocar estas tensões a partir da arte é também enfatizar a inseparabilidade de fundo que atravessa estas formas de pensamento. A aproximação do público, no meu entender, sempre acontecerá de modos diferentes. Costumo preferir a provocação, que convida as pessoas à formulação de perguntas e questões, às traduções que se pretendem simplificadoras. Se há uma vocação científica, ela deve estar aliada a uma atitude filosófica que a situe muito mais do lado desta capacidade de se espantar com o mundo e questionar.
De que forma a ciência é retratada nos filmes? Para o senhor, quais os filmes –fundamentais – que melhor conseguiram construir a adequada representação da ideia de ciência?
A ciência é, assim como a arte, uma forma de pensamento, e quando a arte dialoga mais diretamente com ela, temos um momento importante, no qual ambas se pensam a partir deste diálogo. Por motivos culturais que dizem respeito à própria lógica da atividade científica, determinados filmes sempre trouxeram a imagem do cientista associada aos anseios e ideias que se projetavam sobre ele, normalmente como uma figura que exerce um domínio sobre a natureza e uma autoridade sobre outros discursos, geralmente deslocada, estranha, alheia aos assuntos cotidianos. É claro que, com as mudanças e revoluções culturais, esta imagem foi sofrendo também modificações importantes, embora não seja de todo um processo linear. É muito comum vermos filmes que retratam os cientistas como pessoas que alcançaram um domínio divino e interditado aos homens, e por isso precisam pagar o preço. Podemos encontrar, a partir da segunda metade do século XX e na produção dos últimos anos, uma problematização cada vez maior do lugar hegemônico dos discursos de autoridade e, dentre eles, o do discurso científico, com questionamentos envolvendo suas práticas em relação com os indivíduos e a sociedade. Discussões éticas envolvendo o corpo e a tecnologia, assim como tensões econômicas embutidas nas práticas científicas, são maneiras pelas quais se pode relativizar a ideia de progresso e balançar certos pilares até então tidos como sólidos ou naturais. Por isso, a importância das ciências humanas e das perspectivas que integrem olhares críticos em suas abordagens.
Na Casa da Ciência/UFRJ, é organizado um cineclube mensal, no qual é exibido um filme que dialoga com ciência, seguido de debate com pesquisadores. A mostra “Ver Ciência” reúne filmes sobre o tema. Por fim, na Unicamp, foram organizadas mostras sobre o assunto. A que se deve tal interesse? Podemos dizer que, no País, o tema é historicamente recente?
Embora seja um clichê, nosso mundo é cada vez mais intensamente marcado pela visualidade. As novas atividades cineclubistas que pululam no país, as mostras educativas e informativas, os seminários e pesquisas que surgem sobre o tema, são exemplos desta demanda e exigência com relação à imagem e ao audiovisual na contemporaneidade. É natural que tenhamos cada vez mais iniciativas que incorporem estas práticas e suas potencialidades. Os cineclubes, por exemplo, desde sempre permitiram uma democratização com relação à programação comercial, que possui outros interesses, e ainda oferecem um raro espaço para se pensar questões em conversas, que colaboram, além de tudo, para questionar a passividade do espectador e a centralidade dos discursos que se pretendem hegemônicos. Com a popularização e disseminação das tecnologias de reprodução e exibição audiovisuais, hoje temos uma potencialização destas iniciativas, suprindo demandas e ao mesmo tempo criando novas.
A nossa época é a da sociedade do espetáculo, mas também das células-tronco e da nanotecnologia. Os filmes contemporâneos têm conseguido dar conta desse progresso científico?
Ao reenviarem à ciência as linhas de força que a constituem, não separada do âmbito da cultura, do pensamento, do social e da política, eles não só procuram dar conta como também questionam a ideia de progresso e a pretensa neutralidade do conhecimento científico. Vemos uma preocupação e um cuidado maiores na representação destes temas quando o progresso científico esbarra em certos pontos nevrálgicos que dizem respeito aos indivíduos, à ética, à economia. Talvez exatamente por nossa época ser caracterizada pela intensificação da mídia livre, com a democratização das ferramentas de audiovisual facilitadas pela internet, tenhamos hoje um campo propício para a criatividade, a experimentação, a troca de ideias e questionamentos.
Existem filmes que abordam a ciência em diversos gêneros: documentários, ficção científica, drama, comédia… Podemos falar em um gênero adequado para falar de ciência no cinema? Qual seria?
A ficção científica poderia ser considerada, em uma visão mais imediata, como um gênero mais capacitado para abordar discussões de ordem científica. No entanto, penso não existir esta separação, que confere a um gênero esta exclusividade. Penso que todo filme se relaciona, em maior ou menor grau, com algum domínio do conhecimento capaz de desdobrar suas questões por seus próprios meios. Um filme como O jardineiro fiel, de Fernando Meirelles, pode suscitar uma rica discussão em torno das tensões econômicas envolvendo o saber médico e a indústria farmacêutica, assim como há em Amnésia, de Christopher Nolan, uma possível reflexão sobre a linguagem, a escrita e a história. Quero dizer que não faz sentido apenas restringir o escopo de discussão aos filmes que tratam de ciências naturais, ou exatas, já que todos os campos do conhecimento humano possuem modos diversos de leituras possíveis do real, que se traduzem em formas variadas de entrarem em diálogo com os filmes. Filmes com linguagens tão diferentes, como Stalker, de Andrei Tarkovsky, e Kenoma, de Eliane Caffé, trazem discussões, cada um a seu modo, em torno de pretensões e limites do conhecimento científico. Um filme como Alphaville, por exemplo, de Jean-Luc Godard, pode ser considerado exemplar por ser praticamente um deboche dos clichês, não só da ficção científica, como das linguagens do cinema comercial, ocupadas em narrar histórias que se baseiam nos encadeamentos lógicos, racionais, entre as cenas. É deste modo que ele provoca o espectador com rupturas que traem os modelos tradicionais de narrativa, mostrando outras formas de olhar o filme (e, por que não? o mundo), quando o incita a sair do lugar-comum de suas expectativas.